Mauro Cid, de figura simplória a homem-bomba
Numa conversa rápida nesta segunda pela manhã no Congresso com dois parlamentares bolsonaristas, eu soube que o que mais preocupa o entorno do ex-presidente com a delação do ex-ajudante de ordens Mauro Cid nem é mesmo o que ainda teria para revelar, mas a própria incapacidade do tenente-coronel em identificar e omitir informações que podem complicar ainda mais a vida de Jair Bolsonaro. Porque o problema, comentaram eles, é que Mauro Cid, com aquela cara de beócio, não parece ter competência para raciocinar a ponto de “revelar” o óbvio e esconder o que poderia criar um incômodo ainda maior ao ex-presidente. Nos comentários ácidos desses dois bolsonaristas já nem tão fiéis ao ex-presidente, Mauro Cid é uma espécie de elefante numa loja de louças. Ou seja: se algumas já se quebraram, ele pode destruir o que ainda resta nas vitrines.
Mauro Cid, pelo que se conseguiu apurar até aqui, não passava de um pau-mandado de Bolsonaro. Ele mandava e Mauro Cid obedecia, sem contestar. Tanto que a defesa seguiu exatamente por esse caminho, ao afirmar que Mauro Cid não teria responsabilidade pelas consequências de seus atos uma vez que apenas cumpria ordens superiores. O ex-ajudante-de-ordens está enrolado até as tripas com as três principais acusações que atuzingam a vida de Bolsonaro – fraude nos cartões de vacinação, inserir informações falsas no site do Ministério da Saúde, ocultação das joias recebidas em viagens internacionais (que deveriam ser incorporadas ao patrimônio da União e não ao patrimônio pessoal do presidente e de sua mulher Michelle), além da tentativa de execução de um golpe de Estado para manter Bolsonaro no poder.
A tese da defesa de que o tenente-coronel Mauro Cid apenas cumpria ordens, cabendo aos superiores a responsabilidade pelos seus atos, lembra exatamente a do também tenente-coronel Adolf Eichmann, da SS (organização paramilitar ligada ao Partido Nazista), responsável pela logística de transportes para a implementação da Solução Final, que resultou na execução de 6 milhões de judeus nos campos de concentração mais de 80 anos atrás, durante a Segunda Guerra Mundial. Claro que há uma diferença abissal entre um fato e outro. Mas o que se pretende é estabelecer a inevitável similitude entre as duas situações. A tese da escritora Hannah Arendt, na obra “Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal”, é precisamente a de que um crime não se se justifica pelo fato de seu autor apenas estar cumprindo ordens. Crime é crime e continua crime, mesmo que tenha sido cometido em cumprimento a ordens superiores. Hão de contra-argumentar que não se pode comparar o assassinato de 6 milhões de pessoas com a ocultação de algumas joias, a falsificação de alguns cartões de vacinação e a tentativa fajuta de um golpe de Estado. É verdade, não dá mesmo para comparar.
O que se pretende discutir aqui é o princípio. E ele pode empurrar Bolsonaro para o cadafalso, principalmente pelo fato de Mauro Cid não dispor, digamos assim, de qualidades intelectuais suficientes para se beneficiar das vantagens da delação premiada preservando a figura do ex-presidente. Vai meter os pés pelas mãos, e isso é, apenas… ótimo! O silêncio foi o que a defesa dele fez lá no início, quando o orientou a ficar calado nos depoimentos que prestou tanto na Polícia Federal quanto nas duas comissões de inquérito, a da Câmara Legislativa do DF e a do Senado Federal, justamente para não dar com a boca nos dentes.
Agora, em prisão domiciliar, proibido de ter contato com os outros investigados, Mauro Cid deixou o entorno de Bolsonaro com o c.., desculpe, com o coração na mão. Assumindo a disposição de revelar o que sabe, Mauro Cid pode revelar o que sabe e também o que, mesmo sabendo, não deveria revelar pra não enrolar ainda mais o chefe. Mas ele não tem competência para tanto. Convenhamos: uma coisa é a cabeça de um Paulo Sérgio Nogueira, de um Luiz Eduardo Ramos ou de um Augusto Heleno, militares inteligentes, embora renitentes nas trincheiras do ultra-direitismo que professam, e que formavam uma espécie de cordão de isolamento de Bolsonaro. Outra, bem diferente, é a do tenente-coronel Mauro Cid, um coitado, limitado e pressuroso ajudante-de-ordens que não discutia nem pensava, porque não está habituado a pensar e sim a obedecer cegamente, sem questionar entre o que é certo e o que é errado. Aliás, talvez justamente por essas “qualidades” ele tenha sido o escolhido de Bolsonaro para servi-lo. E por isso tornou-se, de uma hora para outra, um homem-bomba capaz de explodir as estruturas mais sólidas do bolsonarismo, se abrir a boca. E o Brasil espera que abra mesmo.
É bom lembrar que delação premiada, que pode beneficiar Mauro Cid com o perdão total ou parcial de suas penas, exige que ele apresente provas. E aí reside o perigo maior para Bolsonaro e sua defesa, que não terá mais como argumentar retoricamente. Pois contra fatos, como diz o velho ditado, não há argumentos.
(PAULO JOSÉ CUNHA – Escritor, jornalista e professor da UnB. Foi repórter da Rede Globo, do Jornal do Brasil, de O Globo e também trabalhou na Rádio Nacional. Entre outros livros, escreveu A Noite das Reformas, sobre a extinção do AI 5).