A fiscalização não salvará as florestas
———(* Andrea Vucanis)———-
Os noticiários quase diários dão conta de números anuais muito significativos acerca do desmatamento no Brasil. Seja na Amazônia, no Cerrado, seja nos demais biomas brasileiros, o desmatamento nacional é contínuo e progressivo, desde o conhecido evento que se denomina descobrimento.
A ocupação do território nacional que tem como princípio o direito de propriedade privada, impôs uma lógica histórica de avanço sobre o patrimônio ecológico como forma de viabilizar a apropriação da terra e dos recursos naturais, além de ser o grande promotor do desenvolvimento econômico nacional que tem por base principal as atividades ligadas a agricultura e pecuária de larga escala.
Chama atenção o fato de que as florestas brasileiras e demais componentes de paisagens nativas como campos e savanas são responsáveis pelo equilíbrio ambiental em razão dos serviços ambientais que promovem, como a produção de água, regulação do clima, manutenção da biodiversidade e do patrimônio genético, fornecimento de princípios ativos, madeiras, óleos, ciclagem de nutrientes, depuração de resíduos e contaminantes, polinização, sequestro de carbono, controle de erosões, dentre tantos outros.
A política nacional sobre florestas e paisagens nativas está prevista na Lei 12.651, de 2012, o conhecido Código Florestal Brasileiro que, em seu artigo 1º, estabelece os princípios de desenvolvimento sustentável, tendo as florestas como campo de visão, sendo eles: compromisso com a preservação das florestas e demais formas de vegetação nativa; a função estratégica da atividade agropecuária; o uso sustentável das florestas; a responsabilidade comum da União, estados e municípios na preservação e restauração da vegetação nativa e suas funções ecológicas e sociais; o fomento à pesquisa científica; e a criação e mobilização de incentivos econômicos para fomentar a preservação e a recuperação da vegetação nativa e promover o desenvolvimento de atividades produtivas sustentáveis.
O mesmo Código Florestal, em seu artigo 2º, estabelece que as florestas e as demais formas de vegetação nativa são bens de interesse comum a todos os habitantes do país, exercendo-se os direitos de propriedade com as limitações gerais da lei.
As limitações ao exercício de direitos de propriedade sobre as florestas e demais formas de vegetação nativa estão, portanto, nos termos da lei citada, adstritos ao cumprimento de obrigações como a manutenção das áreas de preservação permanente e das reservas legais, a manutenção dos imóveis no cadastro ambiental rural e na obtenção de licenças para a supressão de vegetação nativa para uso alternativo do solo, bem como licenças para o uso de fogo e o transporte de produtos florestais oriundos dos desmatamentos autorizados.
É dizer que o proprietário do imóvel tem incluído, em seu direito de propriedade, o direito de usufruir das florestas e demais formas de vegetação nativa, inclusive de eliminá-las, desde que observados os requisitos mencionados no parágrafo anterior, ou seja, basicamente, respeitar as áreas e locais especialmente protegidos e obter autorizações ou licenças prévias às intervenções.
Dito isto, importante considerar que a lei nacional conferiu ao proprietário o usufruto dos recursos naturais e de todos serviços ambientais que decorrem das florestas aí incluído a perda, pela conversão do uso do solo, de tais serviços.
Diz ainda o Código Florestal, em seu artigo 51, que caberá ao órgão ambiental competente fiscalizar o desmatamento que ocorrer em desacordo com a norma, cabendo-lhe embargar a obra ou atividade que deu causa ao uso alternativo do solo, como medida administrativa voltada a impedir a continuidade do dano ambiental.
Soma-se, no aspecto do combate aos ilícitos contra as florestas, as disposições da Lei 9.605/98 e o Decreto regulamentador 6.514/08 que tratam detidamente dos crimes e infrações ambientais estabelecendo os tipos, as penalidades e as consequências para as práticas ilícitas.
Por certo que a fiscalização do desmatamento ilegal é um instrumento importante no combate ao desmatamento, porém, sozinho, não será capaz de salvar as florestas e demais formas de vegetação nativa e todos os serviços ecossistêmicos decorrentes.
Em primeiro lugar, há que se ter em consideração que o exercício da atividade de fiscalização num território de extensão continental, como é o Brasil, é uma tarefa hercúlea. Por mais fiscais, veículos, aeronaves e equipamentos que os órgãos ambientais das três instâncias governamentais possam ter e dispor, não é possível a presença do estado de forma efetiva em todos os cantos desse país.
A proteção do patrimônio florestal para evitar o desmatamento exigiria a presença física e vigilante, de forma contínua, o que não é possível.
Os instrumentos tecnológicos, por sua vez, como as imagens de satélite tão largamente utilizadas, embora a sua ampla qualidade de resolução e periodicidade quase diária, detectam o desmatamento, depois que ele já aconteceu, quando a perda ambiental já está dada. Isso quer dizer que a fiscalização em âmbito nacional acontece, e quando acontece, de forma tardia pela falta do uso de tecnologias capazes de detectar desmatamentos em tempo real.
Adicione-se o fato de que a efetividade da fiscalização ambiental no Brasil, do ponto de vista da punição efetiva e célere, é bastante questionável. Além de uma instrução processual longa para garantir o contraditório e ampla defesa e a incapacidade da grande maioria dos órgãos ambientais em dar vazão aos milhares de processos, somam-se dificuldades operacionais como a falta de servidores, as dificuldades de localização dos autuados, envio de notificações e correspondências, dentre tantas outras questões que envolve o processo administrativo ambiental punitivo, que ao final, quase sempre deságua no Judiciário.
Os embargos e apreensões de maquinários e instrumentos da infração tem sido mais efetivos em seus resultados, no combate ao desmatamento. O primeiro porque dificulta a comercialização da produção ocorrida após o desmatamento, nas áreas embargadas, já que a cadeia produtiva e os bancos evitam adquirir bens dessas áreas ou financiar a produção, respectivamente. As apreensões porque descapitalizam os infratores e criam dificuldades para a operacionalização dos ilícitos.
Sendo assim, as medidas restritas ao âmbito da fiscalização são limitadas em sua eficácia para conter o desmatamento.
Considere-se que há fatores de mercado que imprimem tensão na dinâmica do desmatamento, dentre as quais destacamos: (i) os imóveis desprovidos de vegetação nativa tem muito mais valor, no mercado, que instrumentaliza um preço de oportunidade mais significativo nas transferências do direito de propriedade em razão da dificuldade e custos em se obter as licenças necessárias à conversão do uso do solo; (ii) as comodities da agricultura e a produção pecuária atribuem valor ao proprietário que a floresta em pé não o faz.
Em contrapartida, a floresta em pé não tem valor econômico, salvo iniciativas pontuais de pagamento por serviços ambientais, o que ainda é uma política pública bastante restrita e acanhada em território nacional ou as áreas de manejo florestal madeireiro ou extrativista, também bastante tímidas em termos percentuais em relação ao território nacional. As reservas legais, áreas de preservação permanente e áreas passíveis de conversão do uso do solo preservadas não agregam valor ao direito de propriedade. Esse é um fato inexorável e que coloca o mercado contra a conservação dos recursos naturais.
Assim, a ampliação do valor econômico do imóvel que é muito grande nas terras exploradas para usos alternativos acabam por produzir um impacto muito importante no desmatamento que a fiscalização, por si só, não é capaz de controlar.
Dito isto, vale ressaltar que a fiscalização não é um princípio da lei florestal brasileira mas um instrumento para contenção de ilícitos. Já, a criação e mobilização de incentivos econômicos para fomentar a preservação e a recuperação da vegetação nativa e para promover o desenvolvimento de atividades produtivas sustentáveis constam expressamente da política florestal nacional, como princípio estabelecido no artigo 1º, parágrafo único, inciso VI da Lei 12.651/12.
Por ademais, o artigo 41 da Lei 12.651/12 prevê a instituição de um programa de apoio e incentivo à conservação do meio ambiente como forma de promoção do desenvolvimento ecologicamente sustentável, envolvendo o pagamento e incentivo a serviços ambientais, compensações financeiras decorrentes de medidas de conservação ambiental, o estabelecimento de créditos, seguros, incentivos fiscais, linhas de financiamento, isenção de impostos e o estabelecimento de um mercado de serviços ambientais que, contudo, infelizmente, nunca saíram, como política pública efetiva, do papel. São raras as iniciativas existentes no Brasil que fomentam a economia verde.
Nesse viés, as economias mundiais buscaram ativos econômicos nacionais que viabilizassem o desenvolvimento dos países. O petróleo no Oriente Médio, a indústria na Europa, a ciência e tecnologia nos Estados Unidos, dentre tantos outros exemplos, foram construções nacionais que viabilizam a geração de renda e empregos, dignificam as populações lhes dando saúde, educação e qualidade de vida.
O maior patrimônio nacional brasileiro é, sem dúvida nenhuma, o patrimônio natural, representado pelas florestas e demais formas de vegetação nativa que precisam ganhar valor, não só subjetivo pela imensa contribuição na prestação de serviços ambientais, como o equilíbrio climático planetário, mas também, valor objetivo, financeiro, revertido em benefícios viáveis e efetivos.
A valorização econômica dos bens ambientais é estratégia duradoura e efetiva para a sua conservação. Investir exclusivamente em fiscalização, como visto, não salvará as florestas, nem tampouco a biodiversidade, os serviços ecossistêmicos ou o equilíbrio ecológico mundial.
( * Andrea Vulcanis é secretária de Estado de Meio Ambiente de Goiás, procuradora federal junto à Advocacia Geral da União (AGU), advogada, mestre em Direito Sócio Econômico pela PUC-PR, professora de Direito Ambiental, pós-graduada em Direito Sistêmico pela Hellinger Schulle e autora do livro Instrumentos de Promoção Ambiental e o Dever de Indenizar Atribuído ao Estado).