Tudo é narrativa, diz a narrativa!
——–(Sergio Rodrigues – Publicado na Folha de São Paulo)——
Lula defende Maduro com clichê que tem sido uma marca da nova direita.
Além de todas as críticas políticas que vem recebendo, o uso que Lula fez da palavra “narrativa” para defender Nicolás Maduro marca um definitivo ponto de saturação desse clichê contemporâneo.
“Cabe à Venezuela mostrar a sua narrativa para que possa efetivamente fazer as pessoas mudarem de opinião”, discursou o brasileiro, garantindo por antecipação ao autocrata vizinho que “a sua narrativa vai ser infinitamente melhor do que o que eles têm contra você”.
Do ponto de vista da linguagem, o que chama atenção é o uso de um dispositivo retórico que tem sido marca da nova direita mundial –empregado inclusive contra Lula.
A moda não começou com a direita. Partindo de bolhas acadêmicas mais associadas ao progressismo, “narrativa” transbordou dos estudos literários para encharcar o mundo de forma supraideológica.
No entanto, não há dúvida sobre que lado se tem beneficiado mais quando eleitores compram a ideia de que não há fatos, não há a régua da realidade —só versões em competição.
Trata-se de um pilar da era da pós-verdade, que costuma ter seu marco inicial situado na eleição de Donald Trump, em 2016, mas que a filósofa Hannah Arendt já previa em 1967 no ensaio “A verdade e a política”.
Esse relativismo cínico prestou e ainda presta grandes serviços à extrema direita brasileira, com sua usina de mentiras sobre a Covid-19, as urnas eletrônicas e, para citar uma cascata em plena produção, o 8 de Janeiro –entre outros temas.
Após o primeiro turno das eleições do ano passado, Jair Bolsonaro alertou contra “narrativas que tentam nos colocar contra nossos irmãos do Nordeste”.
Como o apelo não funcionou e ele foi espancado nas urnas nordestinas também no segundo turno, restou a seu filho mais velho, o senador Flávio, atribuir a culpa a “narrativas (…) criadas pela mídia lulista”.
Com seu histórico comprovado de violações de direitos humanos, não é verdade que o regime venezuelano só não seja considerado uma democracia plena por falta de uma versão conveniente de sua história.
Nem tudo é narrativa. Existe uma coisa chamada realidade –sem a qual Lula dificilmente teria conseguido se eleger.
A coluna da semana passada, sobre virunduns, contribuiu inadvertidamente para espalhar uma “narrativa” muito difundida –mas sem base na realidade– sobre a origem da palavra que o português brasileiro adotou para designar mal-entendidos cômicos em letras de canções.
O termo tem uso mais antigo e de origem nebulosa como nome próprio, Virundum, sinônimo galhofeiro do Hino Nacional, mas teria tido seu novo sentido difundido por Paulo Francis no semanário carioca “O Pasquim”, criado em 1969. Errado.
Alertado pelo pesquisador Sérgio B. Ximenes, fui conferir no arquivo da Biblioteca Nacional e, batata, Francis não tem nada a ver com o peixe.
As duas únicas ocorrências da palavra no arquivo do jornal, ambas de autoria do cartunista Jaguar, são da palavra com o velho sentido de Hino Nacional mesmo.
A questão permanece aberta: quando virundum ganhou a acepção estendida em que cabem versos como “Jogue suas mãos para o céu/ e a cabeça se acaso tiver” (“Na Rua, na Chuva, na Fazenda”, de Hyldon)?
Até onde pude apurar, um blog que fez sucesso em 2003, chamado Virunduns e dedicado a colecionar riquezas desse tipo, é o suspeito mais antigo. Novas narrativas são bem-vindas, desde que baseadas em fatos.