Entenda o que é Intervenção Militar ou de Estado

Após a vitória do candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PL) no segundo turno das eleições, realizado no domingo (30/10), apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL) foram às ruas para protestar contra o resultado das urnas eletrônicas. Caminhoneiros iniciaram uma mobilização nas rodovias brasileiras que se arrasta até esta terça-feira (1°/11) e foi aderida por representantes do agronegócios e eleitores de Bolsonaro.

Na manifestação, iniciada no domingo, os bolsonaristas bloquearam estradas e pediram por uma intervenção militar para reverter o resultado das eleições. “72 horas para o exército tomar conta […] Não tem político nenhum que vai chegar perto de nós e só saímos da rua quando o Exército intervir. É o nosso futuro que está em jogo”, afirmou um dos integrantes do movimento em vídeo publicado na internet. Na noite de segunda-feira (31/10) eram mais de 300 rodovias interditadas.

Para tentar frear os bloqueios, o Supremo Tribunal Federal (STF) expediu uma ordem para a Polícia Rodoviária Federal (PRF) liberar as rodovias. Com o cumprimento da decisão, a PRF desobstruiu estradas em todo o país e o número de ocupações diminuiu para cerca de 200.

Entretanto, mesmo com a decisão do STF e depois do presidente Bolsonaro se pronunciar nesta terça-feira (1º/11) condenando os bloqueios, alguns bolsonaristas se negam a desbloquear as vias e afirma que irão “permanecer as 72h”. Com isso, a PRF pediu reforço à Força Nacional e à Polícia Federal para dispersar os manifestantes.

MUDANÇA DE ‘INTERVENÇÃO’

Com a repercussão negativa do pedido de interferência do Exército, os manifestantes passaram a usar um novo termo: “Intervenção de Estado”. O Correio, então, procurou um especialista em Direito Constitucional para entender do que se trata a “nova” reinvindicação dos bolsonaristas nos protestos, e especialmente para descobrir se tal alternativa é viável legalmente.

O QUE É INTERVENÇÃO MILITAR?

Uma Intervenção Militar é um ato realizado pelas Forças Armadas, compostas pelo Exército, Marinha e Aeronáutica, com o objetivo de intervir no Estado. Com a interferência, a autoridade máxima do país, instituída por meio de eleições diretas, é derrubada e as Forças tomam o controle.

Esse cenário já foi visto antes pelos brasileiros. Em 1964 os militares tomaram o controle do país em um movimento que durou 21 anos. Esse período ficou conhecido como ditadura militar.

Depois do fim da ditadura e com a promulgação da Constituição Federal Brasileira, em 1988, a intervenção militar passou a ser proibida, inconstitucional e tal movimento configura um golpe de Estado. Portanto, a reivindicação dos manifestantes não tem amparo legal.

O QUE É INTERVENÇÃO DE ESTADO?

A Intervenção Federal, ou “Intervenção de Estado” como está sendo chamada pelos manifestantes bolsonaristas, é um mecanismo que possibilita a interferência federativa em um estado ou no Distrito Federal, ou seja, o Governo Federal intervém em algum estado, distrito ou município.

Diferente da intervenção militar, que não é abordada pela Constituição Federal, a Federal está prevista na Carta Magna Brasileira, no artigo 34, mas não pode ser usada para reverter ou anular o resultado de uma eleição democrática.

Por ser uma medida de exceção, a Constituição restringe as possibilidades em que uma Intervenção Federal pode ser decretada. O mecanismo é utilizado somente em situações específicas, em que o Governo Federal entra em cena para manter a ordem pública, para manter a integridade nacional, repelir invasão estrangeira ou de um estado em outro, garantir o livre exercício dos poderes, reorganizar finanças, prover a execução de uma lei ou decisão judicial ou para assegurar os princípios constitucionais.

No caso da manutenção da ordem, a intervenção pode ser acionada somente quando se constatar que as forças de segurança pública estaduais se mostram incapazes. O mecanismo também pode ser usado para manter a integridade nacional, isso diz respeito às partes do país que se declaram independentes, ou seja, separatistas. Também existe a previsão sobre repelir invasão. A Constituição deixa claro que essa situação tem o objetivo de evitar uma guerra.

Quando se fala em garantir o livre exercício dos poderes, a intervenção Federal pode ser adotada se algum estado a atividade do poder Legislativo, Executivo ou Judiciário estiver em risco. No caso da reorganização das finanças, o Governo Federal pode ser acionado quando alguma Unidade da Federação suspende o pagamento da dívida fundada com a União por mais de dois anos consecutivos. Para prover a execução de uma lei, a União entra em cena para garantir que a determinação judicial seja cumprida. Por fim, a Federação pode interferir para assegurar princípios constitucionais sensíveis, que incluem a garantia do regime democrático.

Mesmo nessas situações de exceção, a decisão de decretar Intervenção Federal não é unilateral, como esclareceu o professor de Direito Constitucional da Universidade de Brasília (UnB), Mamede Said. Para declarar a intervenção, o presidente precisa da autorização do Congresso. “Quando o presidente decreta a intervenção, ele tem 24h para submeter o decreto de intervenção ao Congresso. Se o congresso, por qualquer motivo, não autorizar, a intervenção cessa. Não é uma decisão que pode ser tomada de forma unilateral e arbitrária, tem que ser compartilhada com o Legislativo”, salientou.

Assim, nenhuma hipótese prevista pela Constituição permite uma Intervenção Federal por insatisfação política ou com o resultado das eleições. “A Intervenção Federal é excepcional. O artigo da Constituição que trata sobre esse mecanismo primeiro nega, para depois admitir. Isso é, começa afirmando que a União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto em algumas situações muito específicas. Ou seja, a Constituição diz primeiro que não intervirá, exceto para”, explicou Said.

O QUE DIZ O ARTIGO 142 DA CONSTITUIÇÃO?

O artigo 142 da Constituição Federal regulamenta a função das Forças Armadas no Brasil. Ele estabelece que “as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Essas palavras são constantemente usadas por aqueles que defendem a volta da Ditadura Militar. Entretanto, o artigo 142 não confere às Forças Armadas o direito de intervir no Estado. Em relatório de 2020, a própria Câmara dos Deputados já esclareceu a questão e explicou que o artigo “não autoriza a realização de uma intervenção militar constitucional, ainda que de caráter pontual”.

“Como instituições permanentes e regulares, as forças armadas se organizam de forma independente em relação ao governo e funcionam mesmo em contextos excepcionais. A “autoridade suprema” do Presidente da República em relação às forças armadas significa simplesmente que a direção do Chefe do Poder Executivo não pode ser contrastada por qualquer autoridade militar, o que mais uma vez revela prevalência do Poder Civil”, disse a Câmara.

Said elucida os pontos do artigo que falam sobre defesa da Pátria e manutenção da lei e da ordem. Segundo o especialista, usar esses tópicos para justificar uma intervenção militar “não tem qualquer embasamento jurídico”.

“A defesa da Pátria, que aparece no artigo 142, é basicamente a defesa do estado de ameaças externas. Atribuição básica das forças armadas para proteger a soberania do país. Quando se fala da lei e da ordem, temos que entender que esse emprego não se dá de forma aleatória. Esse emprego se dá em casos de desordem pública, após esgotados os instrumentos destinados a manter a ordem”, explicou Said.

As Forças Armadas, portanto, podem ser acionadas pelo Presidente da República quando se faz necessário manter a ordem pública, desde que fique comprovado que os órgãos de segurança pública como a Polícia Militar, Polícia Federal, Polícia Penal, Polícia Civil, Polícia Rodoviária Federal, não consigam conter a desordem. “Primeiro tem que se detectar o esgotamento dos instrumentos destinados à preservação da ordem pública. Não é uma coisa que o presidente decide por vontade própria ou em benefício próprio. O uso das Forças em território nacional representa um Estado de Exceção . A Lei é clara”, ressaltou.

  • O uso das forças militares para a preservação da lei e da ordem não justifica, nem concede o direito, que elas interfiram no poder Executivo. De acordo com o professor, a discussão sobre o artigo 142 está “sendo feita de maneira muito enviesada” e isso “dá asas” para tentar justificar uma intervenção. “É uma leitura totalmente equivocada do artigo. A interpretação dele não pode se dar por um viés político”, afirmou. O especialista ainda assegurou que não há nada na Constituição ou qualquer outra lei no país que possibilite a interferência de militares para impedir o que determinou o resultado das eleições.

ENTÃO PEDIR INTERVENÇÃO MILITAR OU INTERVENÇÃO DE ESTADO É CRIME?

Se a população, algum político, militares ou qualquer outro membro da sociedade brasileira tentar aplicar uma intervenção militar ou uma Intervenção de Estado para situações em que o artigo 34 da Constituição não permite, pode sim configurar crime, de acordo com o especialista Mamede Said.

O Código Penal Brasileiro prevê punições para casos de crimes contra o Estado Democrático de Direito — aquele em que o poder do Estado é limitado pelos direitos dos cidadãos. No artigo 359 I a lei estabelece pena de três a oito anos de prisão para quem “negociar com governo ou grupo estrangeiro, ou seus agentes, com o fim de provocar atos típicos de guerra contra o País”.

Também configura crime atentar contra a democracia. O Artigo 359 L, do Código Penal, prevê reclusão de quatro a oito anos para todo e qualquer cidadão que “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”.

Já o artigo 359 M, esclarece que “tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído” é passível de pena de até 12 anos de prisão. Além disso, segundo o artigo 359 N, quem “impedir ou perturbar a eleição ou a aferição de seu resultado, mediante violação indevida de mecanismos de segurança do sistema eletrônico de votação estabelecido pela Justiça Eleitoral” pode ser punido com até seis anos de prisão, mais multa.

Por outro lado, a população tem o direito ao livre e pacífico exercício de manifestação. Mas os manifestantes devem se atentar aos casos que podem configurar crime e, de acordo com o professor da UnB, Mamede Said, a Intervenção de Estado ou uma eventual intervenção militar, para coibir a execução da vontade do povo, expressa nas urnas, “claramente caracteriza os crimes previstos no Código Penal” e pode levar os envolvidos à responderem criminalmente. (CB).

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