O que há de errado com os militares são os civis
(* Talhes Guaracy)
Na semana passada, mutiplicaram-se na imprensa e nas redes sociais as críticas a uma entrevista, publicada na forma de livro, do general Eduardo Villas Bôas –ex-comandante do Exército, com uma importante participação no cenário nacional recente.
Segundo essas críticas, replicadas pelos replicadores habituais, Villas Bôas teria feito “pressão” sobre o STF, para que não acatasse o pedido de habeas corpus que livraria Lula de ser preso.
Num célebre tuíte, em 3 de abril de 2018, o general afirmava que o Exército compartilhava “o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à democracia”.
Para esses críticos, a intervenção de Villas Bôas, naquele exato instante, teria sido um golpe branco, ainda mais porque ele conta, na entrevista, que o tuíte foi publicado depois de uma consulta aos demais integrantes do Alto Comando das Forças Armadas.
A política, assim como muita coisa na imprensa, vem sendo feita de maldades. A entrevista de Villas Bôas não acrescenta nada àquele e outros tuítes publicados e que, na época, não sofreram esse tipo de crítica, porque era outro o contexto. É maldade, à luz de acontecimentos futuros, rever a história e colocar o que se disse fora do contexto da época, para induzir uma falsa conclusão.
Primeiro, não é de estranhar que Villas Bôas tenha consultado seus pares. Até por conta do ofício, as Forças Armadas são das poucas instituições brasileiras, ou talvez a única, onde, apesar da divergência normal de opiniões, há alguma coesão. Sem isso não há organização e os militares não estariam preparados para nenhuma guerra.
E o contexto era outro. Quando Villas Bôas tuitou sua defesa da democracia, ninguém questionava a Lava Jato, como agora. Ao contrário. Tratava-se então, de fato, de garantir o cumprimento da lei, devido à pressão política que o ex-presidente Lula colocava a seu favor e contra a Justiça brasileira, com apoio da sua militância.
Villas Bôas lembrou que a Forças Armadas estavam ao lado do cumprimento da lei e da Constituição naquela ocasião, da mesma forma que se recusou a colocar o Exército na rua quando, segundo consta, a presidente Dilma Rousseff queria reprimir à força os milhões de cidadãos brasileiros que foram pacificamente às ruas se manifestar contra a corrupção.
Política? Insubordinação? Ou apenas aquilo que se esperava dos militares numa democracia? Ninguém, nem mesmo os militares, é obrigado a acatar ordens absurdas ou que ferem a essência do Estado de Direito.
Não há nenhuma contradição entre o general afirmar que os militares deveriam ficar fora da política e sua intervenção pessoal, que não deixa de ser política. A “política” à qual ele se refere, e como qualquer brasileiro entende, é a política ideológico-partidária.
Fazer o papel constitucional, ou garantir o cumprimento da lei, que serve para todos, de qualquer matiz política, é política somente na medida em que faz parte do sistema democrático e republicano.
Por último, reclamam os críticos que há muitos militares no governo Bolsonaro. Aí está, no fundo, a verdadeira razão do ataque ao depoimento de Villas Bôas, como se ele fosse responsável por este governo, e o governo fosse governo meramente por ter supostamente se beneficiado da prisão de Lula.
Quando Villas Bôas se colocou contra a repressão das manifestações pelo impeachment de Dilma, nenhum vate, nenhum analista político, ninguém, nem mesmo Bolsonaro, tinha ideia de que ele seria eleito.
E foi eleito não pelos militares, e sim democraticamente, pelo voto popular, como poderia ter sido outro, principalmente porque a maioria não queria a volta de Lula ao governo, preso ou não, pessoalmente ou com outro preposto.
Os militares participam do governo Bolsonaro, nem todos necessariamente felizes, por uma razão principal, que não é uma suposta simpatia ideológica com o presidente. Existe uma preocupação real, que não é apenas deles, com a falta de projetos de longo prazo para o Brasil. E esse não é um problema de agora.
As Forças Armadas, lembre-se, são Forças Armadas no governo Bolsonaro, como foram no de Lula, de Dilma, e como serão no próximo governo. E, assim como muita gente, veem o país nos últimos tempos virar joguete da politicagem e de facções ideológicas, enquanto vai perdendo competitividade, padrão de vida e perspectiva de futuro dentro do jogo geopolítico contemporâneo.
Essa é uma preocupação legítima, porque as Forças Armadas, por sua própria natureza, têm sido levadas a pedir por um projeto de país a longo prazo, essencial para o desenvolvimento, do qual depende, inclusive, a segurança nacional. Afinal, não existe segurança de qualquer espécie num país tomado por empresas estrangeiras, miséria galopante nas metrópoles e pedaços do país e das instituições sob controle de milicianos, traficantes e afins.
Nesse ponto, os militares acabam tendo um papel na política, por saber que os governos e os políticos passam, mas eles –e o país, assim como os brasileiros– ficam. E todos arcam com as consequências da malversação do dinheiro público e outras incompetências que na última década, especialmente, vêm nos jogando no atraso.
Os militares, por sua posição particular, têm qualidades e condições de contribuir para a consolidação de planos de longo prazo, dentro do seu papel. Planos que ultrapassem governos, tal qual acontece em países democráticos, como o Japão e a Alemanha, que têm metas e programas para 10 e 20 anos, seguidos por lideranças diferentes, que não abandonam nem mudam o plano geral.
No Brasil, essa visão de profundidade foi abandonada pelos civis, em nome de interesses fisiológicos ou preocupações circunstanciais. O resultado disso tem sido que o país patina de erro em erro, sem conseguir encontrar o caminho do desenvolvimento sustentável.
É preciso estabilidade, confiança e perseverança para atingir objetivos em planos de longo prazo, com moderação e responsabilidade, para fazer o país realmente prosperar.
Quanto à perspectiva de uma excessiva participação militar, que pareça qualquer coisa da extinta e já distante ditadura, é bom lembrar que são os civis que apelam para a força, ou ao suposto controle coercitivo de situações de crise, quando, por sua exclusiva responsabilidade, deixam os problemas se tornarem maiores que a solução.
A crise social, agravada pela pandemia, é obra da incompetência na administração do país, jogado de um lado para outro por gente que de fato não se importa com a ideologia, nem com ideais, só com estar ganhando.
As Forças Armadas têm sido na realidade uma garantia contra os devaneios de quem pretende encastelar-se no poder, para locupletar-se e proteger-se, sem pensar nas consequências para o país, aniquilando a liberdade de manifestação e o princípio democrático da alternância no poder.
Dessa forma, se Villas Bôas fez algo com peso, não foi promover um golpe, e sim evitá-lo.
A invocação dos militares fora dos quartéis no atual quadrante é sinal apenas de que está na hora de reabilitarmos os civis, darmos um basta nos radicalismos e colocar um governo com pé no chão, voltado para a resolução dos problemas, não para a defesa do interesse de uns poucos.
A tolice da elite é o que nos mantém no atraso e a única ameaça real à democracia brasileira. Nossa elite é que precisa de reforma. Até mesmo nos regimes militares, o que está errado são os civis. E não cabe aos militares consertar os problemas nem tomar-lhes as responsabilidades. Cabe à elite corrigir a si mesma –se quiser, de fato, ter um país onde possa continuar ganhando dinheiro.
(*Thales Guaracy é jornalista e cientista social).