O incinerador de presidente
(Artigo de Thales Guaracy, jornalista e cientista social, que revela o lado nada salutar à democracia o impeachment)
Brasil começou a entrar na rotina de querer trocar presidente como se troca técnico de futebol: vai mal, fora. Não é bom sinal. Nem mesmo no futebol.
Depois que a pandemia voltou a crescer no Brasil, com a situação dramática de Manaus e a constatação de que não foi uma boa ideia relegar a segundo plano a vacinação, cresceu de repente o coro pelo impeachment de Jair Bolsonaro.
Outra vez? Desde a democratização, dos quatro presidentes eleitos (Collor, Fernando Henrique, Lula, Dilma), dois foram impedidos (Collor e Dilma). Isto é, 50% dos eleitos foram derrubados. E um acabou preso depois do governo (Lula). Outro mau sinal.
Mais que por conta de corrupção – a única razão legítima para destituir um presidente -, o fator que tem levado ao impeachment é político e econômico. O Brasil não defenestra presidente porque está roubando, ou alguém rouba por ele, e sim porque o governo não está indo bem. O que se confunde, certo ou não, com o fato de o país estar indo mal.
A responsabilidade de quem demite é de quem contratou sem pensar bem. No caso, o eleitor. Porém, é preciso admitir que faltam instrumentos para que se possa corrigir a gestão. Falta ao Brasil uma modernização da democracia, para evitar erros que se repetem – e não é de hoje.
Bolsonaro foi eleito presidente sem uma plataforma de governo, criada depois que ele se elegeu, no chamado “governo de de transição”, a preparação da posse. E ela nunca foi, de fato, implementada.
A obrigação de governar por execução de plataformas de ação, em vez de algumas simples proposições gerais que servem mais como bandeira de campanha, diminuiria a tendência dos governantes ao populismo.
Isso permitiria, por exemplo, compor o governo com o melhor plano de ação em cada uma das suas áreas de atuação, nas quais as ideias da maioria não são necessariamente as do presidente, como a saúde e o meio ambiente.
É preciso votar mais nas ideias, e cobrar sua execução, do que nas pessoas. A personalização do poder tem feito um grande mal. Não funciona concentrar todas as esperanças em cima de uma figura só. E as expectativas são muitas, ainda mais nestes tempos de economia digital global, com alta concentração de renda, desemprego e tensão política e psicossocial, agravadas pela pandemia.
Ao jogar todas as expectativas em cima do presidente, não importa seu partido ou direção ideológica, ele acaba se queimando, diante das adversidades.
O Brasil não pode virar um incinerador de presidentes. Presidente não é técnico de futebol. Não se trata de defender os políticos, nem os técnicos de futebol, este ou aquele. Porém, o governo deveria ser o governo das ideias, não de pessoas. E para isso é preciso aumentar a obrigação de explicitar programas de governo, antes da eleição, e estabelecer metas quantitativas que podem ser aferidas.
Sobretudo, é preciso ter planos de desenvolvimento de longo prazo, de forma a defender o país de tantas mudanças, sempre emergenciais, que não levam a lugar algum. E criar instrumentos para forçar os governantes a seguir o plano. É o que fazem países como o Japão e a Alemanha, onde os governos mudam, mas existe uma planificação geral, que todos seguem, sem grande sobressaltos. É assim que se consegue tranquilidade para investir eo desenvolvimento.
É preciso também melhorar o sistema democrático, de forma a permitir que ele funcione de acordo com a realidade contemporânea, mais dinâmica, que funciona coletivamente, mas também em nichos. Ela permite produzir e administrar uma diversidade de planos setoriais, cada um deles elegível.
Cientistas políticos do mundo inteiro discutem hoje conceitos como o das maiorias móveis e da democracia circular. São fórmulas que buscam adequar a democracia contemporânea à dinâmica social impulsionada pela tecnologia. Levam para a política o conceito e as ferramentas de rede.
Hoje a tecnologia permite o surgimento de uma democracia mais avançada, no sentido de ser mais participativa, legítima e eficaz. A sociedade tem instrumentos não só para escolher representantes, como também atuar na gestão, cobrá-la e mudá-la, quando necessário.
Alguns países já perceberam que a democracia precisa de reformas no sentido de avançar. Depois do Brexit, o Reino Unido começou a repensar seu modelo representativo, o mais antigo do mundo. Os Estados Unidos, também.
O Chile marcou para este mês de abril uma reforma constitucional. Os chilenos querem uma democracia mais ágil e que seja capaz de devolver ao país a capacidade de atingir seu propósito elementar, que é o de refletir melhor a sociedade e melhorar a vida de todos, de uma forma mais igual.
Já o Brasil vive tão afogado nas emergências, agindo por força de interesses ideológicos ou fisiológicos, concentrado em figuras populistas salvadoras, que sequer tem tempo de pensar nas questões estruturais do sistema. E no longo prazo.
Elege-se um Messias e, quando se vê que não existe milagre na política, apertamos o botão para ejetá-lo, esperando que tudo melhore da noite para o dia.
Já estamos carecas de saber que isso precisa acabar. É hora de mudar, se não quisermos, na política, continuar sendo o velho país do futebol.