O País sem futuro vai à praia
(* Thales Guaracy…….)
Quem sobreviveu a 2020 assistiu ao espantoso espetáculo de milhares e milhares de brasileiros amontoados nas praias neste final de ano, justamente quando a pandemia do coronavírus atinge um novo pico de contaminação e mortes – e os governos voltam a adotar medidas de isolamento social.
Não se trata mais do que ocorreu em março, quando se quebrava o isolamento diante da necessidade de sair à rua para ganhar o pão de cada dia, num país em que se vive da mão para a boca. Ninguém nessa multidão desmascarada estava a trabalho, com a exceção do vendedor de picolé.
Em que pese o exemplo discutível do presidente da República, um defensor da liberdade em todas as circunstâncias, ainda que isso implique em risco, o descaso das multidões com a saúde pública faz pensar sobre a natureza de alguns comportamentos coletivos.
Fosse o caso de ironia, podia-se fazer uma comparação com aqueles bichos que cometem suicídio em massa, quando há uma superpopulação. São os golfinhos nadando para a praia, os lemingues pulando do penhasco.
Os naturalistas e biólogos até hoje não sabem explicar bem esse fenômeno, muito menos com seres humanos, que hoje se contam no mundo aos bilhões, mas não são formigas, seres que parecem indiferentes diante do risco de morte.
Seria esse instinto animal inexplicável inerente também ao Homo sapiens, algo superior à civilização? Ou há outra explicação?
Escreveu Émile Durkhein, patrono do método sociológico, que a vida social obedece a regras coercitivas, como uma força externa e independente do indivíduo, obediente a leis como a da gravidade, podendo ser assim estudadas como um fenômeno qualquer. São os fatos sociais. Isso sugere que o comportamento coletivo é diferente do comportamento individual. Tem uma lógica própria.
Na literatura, ninguém reconheceu e expressou melhor a estranheza do indivíduo com relação ao comportamento da sociedade que Franz Kafka, em romances como “A Metamorfose” e “O Processo“. Para Kafka, assim como Durkheim, o mundo coletivo funciona por razões que a razão individual desconhece.
É verdade que parte desse comportamento, no Brasil, pode ser atribuído ao presidente Jair Bolsonaro, um líder que estimula abertamente a liberdade, desde o início da pandemia. Já apontou como inúteis todos os cuidados contra a doença, contrapondo-se a lideranças locais e às recomendações mundiais de saúde, e agora mesmo questiona a validade da vacinação.
Ainda assim, espanta que esse discurso sem cautelas ganhe tanta adesão junto à população. Bolsonaro nunca foi tão popular, como mostram as pesquisas de opinião. Isso se dá menos pela capacidade do presidente em convencer alguém, do que pelo fato de ele mesmo pertencer e representar uma parcela significativa do povo, que pensa da mesma forma e, por sinal, foi decisiva na sua eleição.
Está aí o ponto chave. Uma boa parcela da população ignora o medo não porque ele não exista, mas porque tem pouco a perder. Num mundo sem emprego, sem direitos essenciais e sem perspectivas, que transformou Bolsonaro no seu novo paladino, a vida tem pouco valor.
É o que ocorre com os jovens que integram o tráfico, sabendo que provavelmente morrerão cedo. Pelo menos por algum tempo, terão um grupo com o qual se identificar e dinheiro para desfrutar, em vez de uma vida no esquecimento social, na miséria e na falta de perspectivas.
Num país de cidadãos desiludidos, está em xeque tanto o ideal democrático como o próprio sentido da civilização. Ao contrário da antiga máxima, segundo a qual o Brasil é o país do futuro, rumamos para o extremo oposto. Nas praias brasileiras está o país sem futuro, que vai prevalecendo e ameaçando levar consigo todo o resto.
(Thales Guaracy é jornalista cientista Social).