Abertura comercial para armas é mais um descalabro do governo Bolsonaro, avalia o jornalista José Paulo Kupfer
Está se revelando inesgotável a capacidade de o presidente Jair Bolsonaro produzir descalabros. Se foram muitos –espantosamente muitos– nos dois primeiros anos de governo, nada indica que haverá um freio nos dois restantes. Ao contrário, a escalada de medidas, atitudes, gestos e declarações estapafúrdias dá sinais de ganhar aceleração à medida em que o tempo passa e o mandato avança.
Não são momentos específicos de falta de noção. Ao contrário, os disparates alcançam uma variedade de temas e áreas. Saúde, com destaque para a pandemia de Covid-19, Educação, meio ambiente, economia – para onde se observe a marca bolsonaresca de absurdos estará presente.
O enfrentamento da covid-19, por exemplo, uma prova de fogo para qualquer país, sociedade ou governo, por exemplo, encontrou no Brasil de Bolsonaro um fundo do poço profundo. O negacionismo, a morbidez, a falta de planejamento e ação, o desprezo com medidas que mitigassem o contágio, tudo combinado com a difusão de crenças em medicamentos sem eficácia comprovada e o boicote às vacinas, formam um compêndio inédito e inacreditável de atitudes irresponsáveis.
Na mesma linha e direção bizarras vão as ações governamentais em relação ao meio ambiente. Desmatamentos e queimadas em áreas de preservação são negados, e providências corretivas são acintosamente relaxadas. Madeireiros, garimpeiros e grileiros de todos os tipos encontram no governo Bolsonaro um regaço protetor para sua atividade de devastação.
A economia, onde, em tese, deveria imperar a racionalidade, também é o reino da barafunda. Obsessões ideológicas e ações desencontradas se juntam para produzir inação. A duas semanas e meia do fim de 2020, nem mesmo as diretrizes orçamentárias para 2021 estão definidas. Que dizer do Orçamento para o ano que vem, jogado para cá e para lá, sem que se saiba como fixar seus limites. É desgoverno que se chama?!
Cada ponto dessa estratégia selvagem de destruição institucional forma uma moldura sombria, num rastro de morte. Seres humanos, animais, florestas, rios e mares são afetados por um não disfarçado desapreço pela vida. É exatamente isso que preside a decisão de zerar o imposto de importação sobre armamentos leves.
Resolução da Camex, publicada na 4ª feira (9.dez.2020), retira o imposto já baixo de 20% na importação de revólveres e pistolas. Assinada pelo secretário executivo do ministério da Economia, Marcelo Guaranys, que também é o presidente substituto do Gemex, núcleo executivo da Camex, a resolução é mais um passo na direção de facilitar a posse de armas por quadrilhas, milícias, ladrões e assaltantes.
Trata-se do capítulo mais recente de uma escalada, iniciada na primeira quinzena do governo Bolsonaro, que já soma mais de 20 atos para facilitar posse e porte de armas, corroendo pouco a pouco o Estatuto do Desarmamento. Com data de 15 de janeiro de 2019, decreto presidencial dispensava, em determinadas áreas do país, a comprovação de “efetiva necessidade” para requerer posse de arma. Tão ampla era a desregulamentação que, na prática, a comprovação de necessidade foi abolida.
Daí em diante, houve a elevação da quantidade de munição por arma de 50 para 200, sendo que a Justiça suspendeu a extensão para 600 munições. Em seguida, houve a revogação de portarias do Exército, relaxando marcas e rastreamento de armas. O resultado do esforço governamental, 58 mil registros de armas de fogo foram concedidos no primeiro semestre de 2020, 4 mil a mais do que em todo ano de 2019, que, por sua vez, apontara um aumento de 18 vezes (18 vezes!!!), em relação ao total de concessões registrado em 2004.
É surpreendente, mas há quem tente justificar esse verdadeiro fim de linha de um governo. Por exemplo: liberar tanto quanto possível a aquisição e a posse de armas é uma promessa de campanha, que Bolsonaro vem procurando cumprir. De fato, o presidente prometeu armar a população e reforçou a promessa na famosa reunião ministerial de 22 de abril, tornada pública um mês depois. Na ocasião, Bolsonaro afirmou que desejava “armar todos os cidadãos para evitar a ditadura”.
Além da justificativa política, também há quem tente oferecer argumentos econômicos para o absurdo da eliminação de tarifas para a entrada de armas no país. Zerar imposto de importação de armas seria parte da política de abertura comercial empreendida pelo governo. Não é pouco o cinismo disso.
Ainda que não se conheça, além das declarações genéricas, uma política coerente e consistente de abertura comercial, assessores do secretário Guaranys informam que se trata de política para aumentar a concorrência, reduzir custos e elevar o poder de compra das famílias. Armas de fogo, nessa argumentação, se equiparam, por exemplo, ao arroz, cuja tarifa de importação foi cortada no susto, quando os preços internos explodiram, por um aumento de demanda excepcional, fruto do auxílio emergencial, com origem na demolição da política de estoques reguladores.
Zerar o imposto de importação de armas, de acordo com as assessores de guaranys, equipara-se também ao corte de impostos de importação para produtos da área de saúde relacionados ao enfrentamento da covid-19, e ainda aos cerca de 3 mil itens industriais sem fabricação nacional isentados de imposto de importação –o que, aliás, não é o caso das armas leves, pois existe fabricação nacional.
Sem organização e sem rumo, o Brasil se aproxima de 7 milhões de infectados pela covid-19 e de 180 mil mortos na pandemia. É o resultado das políticas perversas de Bolsonaro, um governante que despreza a vida e abraça a morte. Mas está firme na abertura comercial, facilitando a população a se armar e reforçar nossa orgulhosa posição de liderança nos rankings globais de violência.