O desafio de Biden e toda a humanidade
* Thales Guaracy
Muitas mudanças só acontecem quando a crise se torna emergência. Na imprensa americana, a entrada de Joseph Biden no governo lembra a expectativa pela gestão de Franklin Delano Roosevelt, ao assumir a presidência, em 1933, após a Grande Depressão.
“Os eventos dos próximos anos determinarão se a democracia retomará seu passo, ou se a conversão para o autoritarismo vai se acelerar”, escreveu ainda em setembro o jornalista Frederick Kempe, presidente do Atlantic Council, formado por empresas com interesses nas áreas de segurança nacional, energia e comércio exterior.
A crise que já tomava forma no final do ano passado acelerou-se exponencialmente com a pandemia, cujo efeito tem sido mais profundo e prolongado do que se poderia esperar. O relaxamento das medidas de isolamento já fez recrudescer a doença em todo o planeta, a começar pelos Estados Unidos, onde ocorreram mais de 270 mil do 1,5 milhão de óbitos por coronavírus no mundo.
A pressa agora, levando à vacinação antes mesmo de cumpridos todos os protocolos tradicionais, é para salvar vidas e a economia, que ameaça a sobrevivência da mesma forma. Os indicadores econômicos, sociais e climáticos do mundo pandêmico são alarmantes. No início do mês, a ONU divulgou um relatório projetando que, mesmo com alguma esperada retomada econômica, haverá em 2021 cerca de 235 milhões de pessoas no mundo necessitando de ajuda humanitária –um aumento de 40% em relação a 2020 e três vezes mais que em 2015.
“Conflitos, mudanças climáticas e a Covid-19 geraram o maior desafio humanitário desde a Segunda Guerra Mundial”, afirmou o secretário-geral da ONU, Antônio Guterres. “Se todos aqueles que precisarem de ajuda humanitária no próximo ano vivessem num país, seria a quinta maior nação do mundo.”
A pandemia atingiu sobretudo a economia informal, onde os excluídos pelo emprego pelo menos se viravam. De acordo com a Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe, cerca de 231 dos 566 milhões de habitantes na região, incluindo o Brasil, se encontram hoje na zona de pobreza –pior situação desde 2005. Com isso, a ONU prevê mais migração e a elevação das “tensões sócio-políticas profundamente enraizadas”.
Desafios globais se tornaram exponenciais. O ano de 2020 tem sido o terceiro mais quente desde o início dos registros, em 1850, aumentando o risco de catástrofes climáticas. Como consequência da pandemia, países pobres enfrentam o aumento também de outras doenças, como o HIV, a tuberculose e malária. Segundo a ONU, hoje mais de 5 milhões de crianças com menos de 5 anos de idade enfrentam o risco de morrer de cólera e diarreia aguda.
Além da crise emergencial, a pandemia tornou urgente a adoção de reformas de um sistema cujas fissuras estruturais se alargam. Trata-se de preservar ao mesmo tempo a vida, a democracia e a liberdade.
A era liberal conservadora, que impulsionou o progresso desde a era Reagan-Thatcher, mostra afinal suas limitações. Não se trata de defender o socialismo, nem de fazer a apologia do Estado social. O próprio liberalismo sempre foi o primeiro a reconhecer que, de tempos em tempos, é preciso corrigir a si mesmo.
O pai do liberalismo contemporâneo e da própria teoria econômica, Adam Smith, já escrevia em sua obra seminal, A Riqueza das Nações, que os homens de negócio eram a maior ameaça a si próprios e ao mercado. “Pessoas do mesmo ramo raramente se reúnem, até mesmo para se divertir, mas quando o fazem, a conversa termina numa conspiração contra o público, ou então num conluio para aumentar os preços”, escreveu ele no livro, publicado pela primeira vez em 1776.
A natureza competitiva do capitalismo, que faz o sistema buscar sempre a otimização máxima, seja pela redução de custos, seja pelo desenvolvimento da tecnologia, não mudou no capitalismo digital global. Os empregos diminuíram, apontando para a extinção do trabalho formal. Durante três décadas, nada no mundo liberal deteve essa autofagia galopante do capitalismo, que aperfeiçoou as empresas, mas destruiu o mercado de consumo, na sua passagem do modelo industrial para o tecnológico.
Quando Barack Obama procurou salvar os náufragos do crash de 2008, lançou tábuas de salvação para bancos, devedores e toda a economia americana, mas não mexeu na lógica econômica. Apenas postergou a solução do problema, que retorna agora, ainda mais grave. Inclusive pelo fato de que o Estado americano desta vez se encontra com menos condições financeiras e controles para intervir.
Resta saber se Biden, que acompanhou Obama tão de perto, como seu vice e conselheiro-mor, pode dar início a reformas mais profundas. No seu projeto, está reunir os países democráticos num fórum em 2021 para uma solução conjunta contra a crise global e a reforma democrática nos países que pedem por mais legitimidade nas decisões e soluções contra a exclusão social. É um início de mudança, que, espera-se, não venha tarde demais.
(Thales Guaracy é jornalista e cientista social).