Colóquio, um dedo de prosa

* Profa. Marilucia Flenik, Dra.

O massacre de Suzano e o lamento dos que choram.

Vivenciamos há alguns dias o massacre de Suzano. Dois jovens, um deles ex-aluno da escola, a invadem e matam funcionários e jovens sem dó nem piedade.

Estarrecidos com esse desatino, a sociedade brasileira se pergunta: por que? O que se passa no cérebro dessas criaturas? Não se pode falar em “coração” – que significa as emoções -, pois justamente lhes falta esse sentimento de compaixão pelos outros. Loucos? Com certeza.

 

Muito se falou a respeito de ter ou não armas, jogar ou não jogar jogos violentos no computador… Pe. Fábio de Melo foi aplaudidíssimo quando questionou a falta de estrutura das famílias e do desamor. A partir de sua fala, pensei: – não podemos culpar os pobres pais e mães desses rapazes. 

Na verdade somos todos culpados. A doutrina da Igreja nos ensina, desde pequenos, que existe um “pecado original” decorrente do nosso ingresso no “mundo animal”. Adão e Eva foram expulsos do paraíso, ou seja, lugar de eterna felicidade, e condenados a viver com esforço. “Do suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado: porquanto és pó, e em pó te tornarás.” (Genesis, 3,19) 

Quero crer que a origem dos desajustes de conduta vem da ausência do “esforço” de se ajustar às regras da convivência humana, – crescer, estudar, trabalhar, constituir família, se sacrificar, laborar, laborar e laborar – com altruísmo e dedicação. Alguns indivíduos não assumem a condição humana de labuta e desafios permanentes e se “perdem” no emaranhado de seu psiquismo.

Como expressou Emmanuel Lévinas (1906-1995), o eu é detestável, recuperando uma expressão de Pascal: “É meu lugar ao sol, eis o começo e a imagem da usurpação de toda Terra.” (ENTRE NÓS, 2005). Para o autor existe uma culpa social. A falta social é cometida inadvertidamente em relação à multiplicidade de terceiros, que não se pode olhar de frente, mas dos quais se conhece o “rosto”. Essa “criatura humana” é chamada de “ser” mediante a invocação, reconhecendo-me no seu “rosto”, uma vez que é meu semelhante.

O sentimento moral surge no reconhecimento de que pertencemos à espécie humana. Ao dirigir a palavra um ao outro, surge a pessoa, negligenciando-se o ser universal que ela encarna para particularizá-la no ente que ela “é”. Eis aí a origem da socialidade, pois o reconhecimento do “ser” se traduz num encontro, havendo em toda atitude referente ao humano uma saudação. 

O eu livre transita entre a culpabilidade e a inocência em relação aos outros, pois pode lesar outro ser livre e sofrer as repercussões do mal que terá causado. A moral de uma pessoa vai muito além do círculo restrito dos familiares e amigos, onde existe a possibilidade do exame de consciência e o perdão das faltas cometidas, reencontrando o eu, no diálogo, mediante o perdão, a sua própria identidade.

Para Levinás, a moral terrestre convida ao caminho difícil que conduz em direção aos terceiros que ficaram fora do amor. Assim exsurge o verdadeiro social, que confere uma função primordial à linguagem, diante da exterioridade da consciência, uma vez que o homem passa a ser, não o que tem consciência de ser, mas o papel que exerce em um drama do qual não é o autor, onde a inteligência se manifesta por sua astúcia. Ser como má consciência, ter que responder, ter de falar, ter que dizer “eu”, ter de responder pelo seu direito de “ser”.

Reconhecer o outro como carne da minha carne, sangue do meu sangue, traz-me o sentimento de pertencer à humanidade e considerar toda e qualquer criatura como digna de respeito tal qual eu. 

Quero crer que é a ausência desse sentimento de compaixão, que não existe nas mentes atordoadas de pessoas capazes de matar, pelo simples prazer de matar. Quando jovem fiquei chocada com a morte de John Lennon. O assassino justificou seu ato dizendo que queria ser famoso. Esses loucos que promoveram o massacre de Suzano também queriam a notoriedade. 

O que fazer? Chorar as nossas culpas por sermos “humanos” e saber que a loucura está à espreita e pode surgir a qualquer momento, vinda da noite escura do mundo, ou seja, do turbilhão que é a alma humana. 

(* Professora Marilucia Flenik é ocupante da cadeira número 17 da Academia de Letras do Vale do Iguaçu). Texto de sua autoria postado no Facebook.

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