O respeito chafurdou na lama (* Carlos José Marques)
O lodaçal de lixo, areia e rejeitos tóxicos que varreu Brumadinho esparramou consigo as podres práticas de imprudência, descaso e impunidade que parecem expor um País em ruínas.
Obras públicas caindo aos pedaços, pontes e viadutos interditados e catástrofes de grandes dimensões como o incêndio do Museu Nacional, no Rio, e da Boate Kiss, na cidade gaúcha de Santa Maria, demonstram cabalmente a fissura tremenda no quesito da fiscalização por órgãos públicos, como a relembrar ao povo que vivemos por aqui condenados a uma rotineira incúria administrativa.
O Brasil parece incapaz de coibir e punir eficazmente os responsáveis por tragédias como essa, numa chaga lancinante sem fim. Nas estruturas federais e estaduais, nas agências reguladoras, no Congresso, em todas as autarquias e mesmo na Justiça prevalece a lei do mais forte, do jeitinho, do acordo com protelações infindáveis, com multas não pagas, reparações não executadas e, acima de tudo, um forte lobby das bancadas de mineradoras, construtoras, gestoras e o escambau a quatro na busca por favorecimentos acertados a peso de ouro.
Corporações se movem com eficiência nos bastidores do poder para acobertar falhas. Ignoram alertas. Escamoteiam riscos. Gastam fortunas com advogados para lesar milhares por meio do engavetamento das indenizações. Atolam o respeito e a dignidade humana na lama de seus dejetos. E depois oferecem alguns trocados a título de reparação.
De certa forma, a delinquência empresarial atingiu status de prática vantajosa devido aos espúrios conchavos políticos. Um relatório da Agência Nacional de Águas apontou que menos de 3% das quase 25 mil barragens existentes no País foram fiscalizadas de 2017 para cá. A maioria delas segue sendo construída com tecnologia de resistência abaixo do ideal por custarem, naturalmente, mais barato. Os envolvidos na escolha demonstram desprezo pela coletividade e banalizam as consequências do perigo.
Nos tornamos célebres pela ausência de responsabilidade. Nem mesmo compaixão pelo sofrimento implacável das vítimas que tudo perdem é levado em consideração nessas horas. Em Brumadinho, contam-se às centenas os mortos e desaparecidos. Milhares de impactados pela dimensão da calamidade.
O repisar da agonia de famílias que ficam sem os entes queridos, os bens, a vida já difícil que tinham, é insuportável. O crime existe. Não pode ser classificado de outra forma. Não há atenuantes. Suposições alternativas. Atribuir a causas naturais ou a alguma fatalidade – como tentou abjetamente fazer a ex-presidente Dilma, que assinou até decreto nesse sentido – é de uma desfaçatez abominável. Brumadinho carrega consigo alguns aspectos absolutamente irrevogáveis que agravam a dor fruto da catástrofe.
O mais relevante deles soa como premonição para outros futuros eventos do tipo: a falta de punições exemplares levou e, invariavelmente, continuará a levar o País a uma sucessão inconcebível de episódios trágicos dessa magnitude. Aconteceu diversas vezes e deve acontecer de novo nessa toada. Pode anotar.
Tome-se o próprio exemplo de Mariana, ocorrido há três anos, e sobre o qual ainda arrastam-se ações não concluídas, determinações não cumpridas, realocações de desabrigados e reconstruções que não foram realizadas. É inconcebível que uma companhia, em tão estreito hiato de tempo, seja protagonista de dois acidentes dantescos, promovendo uma dívida social imensurável, sem que o Estado demonstre a mínima capacidade de mudar esse quadro de coisas. Estão escancaradas as vísceras de um sistema falido.
O modelo de atuação precisa ser repensado urgentemente. E aí reside a outra parte do problema. A complacência do setor público ainda grassa com fervor, mesmo sob a égide do governo que acaba de assumir. Não faz muito tempo, era o próprio presidente Jair Bolsonaro quem prometia o afrouxamento da legislação ambiental. Até a extinção do ministério que cuida do assunto estava no radar do mandatário. Em reunião com produtores rurais chegou a garantir que iria segurar as multas. “Não vai ter um canalha de fiscal metendo a caneta em vocês”, disse. Talvez o bom senso prevaleça e ele agora mude de opinião.
Em Davos, há poucos dias, Bolsonaro chegou a afirmar que “somos o País que mais preserva o meio ambiente”. Os fatos logo calaram a bravata. Há uma eterna e deliberada confusão que se faz por aqui entre estoque de florestas e a sua efetiva preservação. Somos privilegiados pela natureza, o que daí vai uma longa distância sobre nossa capacidade de mantê-la adequadamente. A riqueza do meio ambiente, que é de todos, não pode simplesmente chafurdar na pororoca da inconsequência e irresponsabilidade. (*Carlos José Marques/IstoÉ).