Menguele, o médico monstro do nazismo, que viveu no Brasil, tem segredos dissecados em livro
Em fins da década de 1970, no bairro paulistano de Eldorado, um homem sexagenário janta salada “para manter a linha”, depois se acomoda diante da televisão para assistir às novelas das seis, das sete e das oito. À exceção de Escrava Isaura, que teria “negros demais”, ele parece apreciar todos os folhetins.
Leva uma vida solitária, exceto pelas visitas semanais, às quartas-feiras, de um amigo próximo, que às vezes traz consigo a esposa e os filhos, e, aos domingos, do jardineiro, com quem assiste à TV depois de servir o café da tarde (pão e geleia). É uma existência aparentemente pacata, não fosse pelo temor de ser desmascarado e preso ou morto por conta de crimes sem precedentes cometidos durante a Segunda Guerra Mundial.
O homem é Josef Mengele, médico e oficial nazista que, em Auschwitz, recebeu o apelido de Todesengel — “Anjo da Morte”. No livro Baviera Tropical, a jornalista Betina Anton nos conta como um dos criminosos mais hediondos do século 20 conseguiu se esquivar de seus perseguidores e levar uma vida relativamente pacata no Brasil.
Ao todo, foram quase vinte anos “hospedado” em São Paulo, primeiro no interior, nos sítios em Serra Negra e Caieiras, depois na capital. Antes, sempre ajudado pela família e por um círculo de amigos fiéis, Mengele viveu na Argentina de Perón e no Paraguai de Stroessner. Como foi possível?
Ora, a relação dos caudilhos com os nazistas era amistosa. Hans-Ulrich Rudel, por exemplo, piloto condecoradíssimo da força aérea hitlerista, residia em Buenos Aires desde 1948 e “ajudou a modernizar a aeronáutica argentina”, ganhando “contratos e licenças do governo”, além de auxiliar na criação de “um fundo emergencial para apoiar os companheiros recém-chegados da Alemanha”.
O apoio de Perón foi essencial para o estabelecimento dessa rede de proteção. Com a ajuda do padre José Clemente Silva, que chefiava a delegação de imigração em Roma, o presidente argentino “criou um esquema para facilitar a fuga de nazistas” para o nosso continente. Se Buenos Aires é a “Paris da América do Sul”, talvez a referência seja à Paris ocupada, território administrado por abutres como Otto von Stülpnagel.
Em sentido horário: Legista Wilmes Teixeira e delegado Romeu Tuma monstram restos mortais de Josef Mengele para a imprensa em 1985; reprodução de foto do criminoso de guerra à época da passagem pelo Brasil; crânio de Mengele exibido a estudantes da Escola de Medicina da USP, em 2017 Foto: Reginaldo Mantente/Estadão; Oswaldo Jurno/Estadão; Leonardo Benassatto/Reuters.
Amparada por uma pesquisa admirável, Anton repassa a vida e as fugas de Mengele em ritmo de thriller. Aos inúmeros crimes cometidos durante a guerra, ela dedica capítulos centrais do livro. É imprescindível ressaltar (e a autora faz isso brilhantemente) que os desmembramentos e torturas disfarçados de “experimentos científicos” não foram obra de um mero louco, mas, sim, integravam a política de estado vigente. Havia método e organização na carnificina. As “pesquisas” de Mengele estavam em plena conformidade com a ideologia e a pseudociência nazistas.
Assim, ele amarrou os seios de uma prisioneira que acabara de dar à luz para descobrir quantos dias o recém-nascido aguentava sem alimentação, destruiu as cordas vocais de um indivíduo para entender por que ele não cantava tão bem quanto o irmão gêmeo, mergulhou pessoas em tinas com água escaldante e gelada para “estudar” os efeitos das temperaturas extremas no corpo humano e costurou as veias da cabeça e das costas de um par de gêmeos, tentando “transformá-los” em siameses. Os relatos sobre como Mengele lidou com epidemias de noma e tifo em Auschwitz são particularmente inclassificáveis.
Jona Laks, em primeiro plano, é uma sobrevivente dos experimentos com gêmeos feitos por Josef Mengele. Ao fundo, a neta, Lee Aldar, ao lado do portão do campo de extermínio de Auschwitz, em Oswiecim, Polônia, em 2020.
No campo, ele também participava das “seleções”: a cada trem de prisioneiros que chegava, escolhia quem ainda estava apto para trabalhar, quem seria submetido às suas “experiências” e quem deveria ser encaminhado diretamente para as câmaras de gás. Tudo isso com um mísero gesto de mão.
Ao narrar esses e muitos outros horrores, Anton é exemplar. Ela nomeia várias das vítimas e dos sobreviventes (alguns dos quais entrevistou), reumanizando-os. Com isso, oferece uma contribuição justa à memória da Shoah (termo preferível a “Holocausto”), e o faz sem recorrer a muletas conceituais — como a não raro incompreendida noção de “banalidade do mal” desenvolvida por Hannah Arendt em Eichmann, em Jerusalém.
Capa de ‘Baviera Tropical’, de Betina Anton
Em um momento no qual antissemitas zurram pelo mundo afora, mal disfarçados sob a máscara do antissionismo, é importante resgatar esse momento da história judaica, inclusive para evitar comparações estapafúrdias entre a tragédia presente e os desastres pretéritos. Na interminável noite europeia, Mengele é uma besta incontornável.
Em vista disso, precisamos lamentar sua sorte. Teria sido melhor para a humanidade se, em vez de Baviera Tropical, Anton tivesse escrito algo como Mengele em Jerusalém. Que o “Anjo da Morte” não tenha sido julgado e condenado por seus crimes, ludibriando as autoridades em terras brasileiras até se afogar em Bertioga, cercado por amigos (e o ludíbrio ainda continuou por seis anos após a morte), é uma injustiça que apenas reitera a persistência do mal em nosso mundo.
(COM CONTEÚDO DO JORNAL ‘O ESTADO DE SÃO PAULO’ E HOJEPARANÁ).