Eleições 2022: Uma Biografia
———(* Volgane Oliveira Carvalho———)
Um cientista obstinado que decida produzir uma análise densa da eleição brasileira de 2022 estaria fadado a desenvolver uma obra longa, uma vez que são muitas as nuances, questiúnculas e dúvidas que precisam ser abordadas e explicitadas. Esse trabalho hercúleo, entretanto, seria essencial para o fortalecimento do regime democrático do Brasil na atual quadra histórica.
A abordagem deveria ser iniciada buscando-se fixar o marco inicial das campanhas eleitorais, e essa missão, por si só, já guarda muitos problemas. A precocidade da campanha eleitoral é um tema permanente debatido que possui como parâmetro maior o artigo 36-A da Lei das Eleições. Esse padrão, entretanto, tem se mostrado insuficiente para albergar as complexidades das campanhas eleitorais na contemporaneidade, servindo para, ainda que de modo involuntário, fomentar uma diferenciação indevida entre contendores, privilegiando os incumbentes.
Adiante, no período eleitoral propriamente dito, ou seja, no espaço temporal que vai do fim das convenções partidárias e registro de candidaturas até o pleito, surgem outras demandas que precisam ser resolvidas. Focarei em uma das questões capitais do pleito: o combo formado por desinformação, liberdade de expressão e intervenção da Justiça Eleitoral.
Esse vespeiro jurídico trará a felicidade de muitos estudantes nos próximos anos, pois servirá de mote para a produção de profícua obra tentando equilibrar os pesos nessa balança disforme. Obviamente, não haverá respostas definitivas para tais questões, mas nosso cientista poderá guiar-se por algumas linhas essenciais que partem de algumas certezas jurídicas.
Em primeiro lugar, é certo que não existem direitos absolutos e que o regime constitucional foi estruturado com a criação de limitações aceitáveis a tais direitos. Isso, por certo, aplica-se à liberdade de expressão e a todos os seus consectários: as liberdades de manifestação de pensamento, de imprensa e de cátedra, por exemplo.
Em segundo lugar, fixe-se que a desinformação pode ser compreendida como a difusão de conteúdos deliberadamente falsos (dissociados da realidade factual), manipulados, descontextualizados ou adulterados. Por fim, é certo que inexiste direito fundamental à difusão da desinformação, logo, não configurará censura qualquer ato jurídico que impeça tal mister.
A partir desses fundamentos deverá ser reconstruído o ambiente informativo na seara eleitoral, equilibrando o direito à propaganda eleitoral dos candidatos e partidos políticos, o direito do eleitor à informação de qualidade e o papel da Justiça Eleitoral na moderação do fluxo informacional e correção das distorções.
Outro tema candente diz respeito às condutas abusivas e aptas a influir na regularidade e normalidade do pleito. O abuso de poder político caracterizado pela atuação dos chefes do Poder Executivo utilizando a máquina pública, através da ação de secretarias, ministérios e outros órgãos públicos para favorecer a sua própria candidatura ou de terceiros.
O abuso de poder econômico que, nesse pleito, se notabilizou pela difusão de inúmeras ações empresariais para promoção de candidatos e partidos políticos travestidas de simples marketing, utilizando cores, formas e números uniformemente relacionados aos players de sua preferência.
O abuso no uso dos meios de comunicação social que se relaciona, cada vez mais, com o uso das mídias sociais (serviços de mensageria, mídias sociais e outros aplicativos) e a difusão de conteúdos relacionados à desinformação como relatado anteriormente.
Além disso, dois outros eventos com fundo abusivo ocorreram de forma ampla nesse pleito: o uso de templos religiosos para a difusão de propaganda, o assédio eleitoral e o uso das polícias no dia da eleição.
As questões relacionadas à realização de propaganda eleitoral em cultos religiosos já foram tema de análise pelo Tribunal Superior Eleitoral nos últimos anos, contudo, parece inevitável que a corte seja chamada a revisitar a questão e, possivelmente, necessite reavaliar seu posicionamento a fim de que sejam afastados os excessos disfarçados de manifestações de fé.
Do mesmo modo, o assédio de empregados por seus empregadores com fim de obter votos para um determinado candidato ou partido político, valendo-se de seu poder hierárquico multiplicou-se descontroladamente. Esse cenário, embora esteja sendo combatido com a legislação vigente, parece merecer outras abordagens a fim de resguardar com maior completude os direitos dos eleitores-trabalhadores.
Por fim, inesperadamente, a atuação da Polícia Rodoviária Federal na data do pleito, trouxe à baila a necessidade do estabelecimento de limites claros para a atuação das forças policiais no período eleitoral, para que não reste sequer sombra de dúvidas acerca da correção de suas ações e que não pairem quaisquer riscos à livre circulação de eleitores de todos os estratos sociais, todos os espaços das cidades e de todas as regiões do país.
No que diz respeito ao processo eletrônico de votação parece que o modelo brasileiro, uma vez mais, triunfou, não subsistindo qualquer mínimo sinal de fraude ou inconsistência do modelo. De outro lado, o papel da Justiça Eleitoral continua na berlinda de um modo quase patológico, pois se reclama com a mesma força e frequência de que ela tem um papel excessivamente interventor e, ao mesmo tempo, que sua fiscalização é insuficiente.
Esse dilema parece ser socialmente persistente e escancara o cenário de dificuldade em que os órgãos eleitorais estão imersos e parecem não conseguir se desvencilhar. Nesse caso, é de se buscar compreender quais as causas fomentadoras das críticas e, concomitantemente, reavaliar sua atuação e a forma como seu papel é apresentado e explicado à coletividade. Ao fim do pleito, restarão, ainda, os debates acerca do manejo de ações cassatórias em eleições presidenciais e seus impactos no ecossistema eleitoral e sobre a necessidade de aceitar-se o resultado das urnas sem quaisquer tentativas antidemocráticas de subversão da ordem.
Como se vê, o acervo de estudo para a elaboração de uma biografia do pleito de 2022 é tão amplo que apenas um estudioso possivelmente não consiga enfrentar todos os temas com a profundidade e persistência necessária. Estão todos, portanto, convidados a repensar esta eleição e buscar as lições que delem podem ser extraídas para o aperfeiçoamento do modelo democrático brasileiro.
(* VOLGANE OLIVEIRA CARVALHO É MESTRE EM DIREITO).