Responsabilidade comunitária na proteção de mulheres e meninas
Sabemos que a violência sexual no Brasil é cometida majoritariamente contra crianças e adolescentes. Um levantamento feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pela Unicef realizado em outubro do ano passado constatou que cerca de 100 crianças e adolescentes de até 14 anos são estupradas por dia no Brasil. Dentre as vítimas, 86% são meninas e 35% são crianças de até 10 anos.
Ainda, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022 divulgado nesta terça-feira (29/6), 75,5% das vítimas de violência sexual no Brasil são vulneráveis ou incapazes de consentir, enquanto 61,3% delas têm até 13 anos de idade.
Muito embora seja popular a ideia de que mulheres e meninas são estupradas por desconhecidos enquanto caminham sozinhas à noite, a verdade é que em 84% dos casos, os estupros são praticados por homens conhecidos das vítimas, que pertencem ao seu círculo social e familiar.
Violência sistêmica e complexa, os crimes sexuais intrafamiliares criam uma dinâmica que requer, para sua real compreensão, olhar interdisciplinar de toda a comunidade, já que a confiança intrínseca ao vínculo familiar é estabelecida e depois violada, um dos fatores que enseja a subnotificação. A agressão sexual, via de regra, é mantida em segredo por anos. Algumas pessoas podem nunca revelar. Quando a revelação acontece, geralmente é fruto de um longo caminho e não um evento isolado.
A problemática nos revela a crise cultural que recai sobre os corpos femininos, já que quando se trata de violência sexual intrafamiliar é comum o silenciamento da família. Escolher não denunciar às autoridades competentes traz à tona conjecturas mais profundas do que o pensamento superficial de que “conflitos familiares se resolvem em casa”.
Isto porque a violência sexual gera sequela psíquica que tende a transmissão transgeracional: crianças vítimas podem se tornar mulheres que revivem a violência sexual na vida adulta, ou homens que atuam socialmente como predadores sexuais.
A falta de compreensão da função traumática no sistema neurocerebral também contribui para a subnotificação. A maior parte das pessoas desconhece os impactos do trauma psíquico e as consequências determinantes nas ações e reações durante eventos traumáticos.
A narrativa das vítimas de agressão sexual que escolhem denunciar é resultado de um evento traumático e, exatamente por essa razão, é muitas vezes não linear, possui contradições e lacunas, assim como a memória da vítima, que durante a agressão não consegue fazer qualquer uso da parte cognitiva do cérebro.
O estigma que recai sobre a vítima, o receio de que a família ou outras pessoas saibam, a sensação de impotência por não poder provar o incidente e o medo de não ser levada a sério, de ser tratada com hostilidade, menosprezo ou desconfiança pelo sistema são fatores que contribuem para o silenciamento das vítimas.
Para além do contexto do trauma psíquico, o silenciamento familiar resulta em cifra não contabilizada de crimes não denunciados que, de forma cíclica, retroalimenta a prática de novos delitos pela sensação de impunidade. Seja pelo silenciamento familiar ou por temer o julgamento social e a revitimização, a verdade é que estamos longe de conhecer os reais números sobre a prática de violência sexual no Brasil.
Por se tratar de violência sistêmica, cujas causas são profundas e variadas, observa-se que a exclusão do diálogo na infância e adolescência sobre o consentimento do corpo corrobora para a exposição à violência sexual, enquanto paradoxalmente se espera que crianças e adolescentes saibam se proteger das violências.
O fato é que, como vimos em caso amplamente divulgado pela mídia na última semana, o estupro infantil pode resultar em gravidez, circunstância que garante às vítimas e seus representantes legais a opção de realizar o aborto humanitário, previsto no artigo 128, inciso II do Código Penal. A legislação brasileira não prevê um tempo máximo de gestação para a realização do aborto nas hipóteses legalmente previstas e sequer exige-se o registro de boletim de ocorrência ou autorização judicial para a interrupção da gravidez.
Apesar disso, a menina de onze anos que engravidou quando ainda tinha dez, em decorrência do estupro sofrido, foi mantida em um abrigo por mais de um mês para que não fizesse o abortamento legal, demovida em audiência por duas mulheres, juíza e promotora, a manter a gestação que declarou não desejar.
Lembremos que, antes de ser encaminhada para tutela estatal, a criança e sua mãe buscaram um hospital local que se negou a realizar o procedimento sob o argumento de que a gestação, de 22 semanas, estaria avançada demais.
O caso revela uma sequência de violações à dignidade desta criança que, infelizmente, não é a única, além de trazer à tona problema estrutural no país: o despreparo de agentes públicos e da saúde no manejo de situações que exigem olhar complexo e multidisciplinar.
Outro caso midiático divulgado há poucos dias corrobora a precariedade no atendimento às vítimas de crimes sexuais: uma atriz narrou ter engravidado em decorrência de estupro e entregue o bebê, ao nascer, para adoção.
Não é novidade alguma a existência do instituto da adoção legal, que busca proteger o melhor interesse da criança, direito fundamental intrínseco à infância e reconhecido pelo Estatuto da Criança e Adolescente.
A entrega voluntária é prevista no ECA graças à alteração de 2017, conhecida como Lei da Adoção (Lei 13.509/17). Em procedimento assistido pela Vara da Infância e da Juventude, a família extensa é inicialmente buscada e, após, caso não haja o interesse desta, a criança é colocada sob a guarda provisória de quem está apto a adotá-la. A lei garante à mãe o direito ao sigilo sobre o nascimento (art. 19-A, § 9o).
Fato é que, em ambos os casos divulgados nesta semana, tanto a criança quanto a jovem mulher que sobreviveram a violências gravíssimas foram julgadas por suas decisões ao exercer direitos previstos em lei. Fica claro: o que incomoda não é o aborto, e sim a autonomia das mulheres sobre seus corpos e sua vidas em uma sociedade patriarcal.
Seja o abuso de autoridade cometido pela autoridade judicial que revitimiza mulheres, a violação de sigilo de profissionais da saúde, ou a conduta antiética e difamatória de jornalistas sensacionalistas, todas estas práticas nos revelam os obstáculos sociais no enfrentamento à violência sexual contra meninas e mulheres.
Sem o engajamento de toda a comunidade na conscientização sobre violência sexual e na construção de uma educação não sexista, não avançaremos. É preciso que as vítimas deixem de ocupar o protagonismo sob ataques, enquanto os agressores permanecem no anonimato. É urgente que a escolha pelo aborto legal ou entrega voluntária seja respeitada, ao passo que eliminemos a naturalização do abandono paterno de filhas e filhos. É imperioso que eduquemos meninos e homens para o respeito ao consentimento, a liberdade e a autonomia de todas as meninas e mulheres.
(* Izabella Borges -e mestra e doutoranda pela USP e presidente do Me Too Brasil. Revista Consultor Jurídico).