Transmissão descontrolada pode fazer do Brasil ‘celeiro’ de variantes
A disseminação sem controle do novo coronavírus no Brasil está deixando cientistas nacionais e estrangeiros em alerta sobre o impacto que isso pode ter sobre a pandemia como um todo, em especial no surgimento de novas variantes do SARS-CoV-2.
Uma preocupação é que o país se torne uma espécie de “celeiro” de mutações, dificultando ainda mais o combate à covid-19.
Quanto mais o vírus circula, e se replica dentro dos seres humanos, maior a chance de ele acumular mutações e gerar novas variantes.
É um processo que faz parte da natureza desse organismo, mas é favorecido em cenários de descontrole como o que vemos no Brasil, que enfrenta o pior momento da pandemia em um ano em meio a um relaxamento das medidas de segurança.
Enquanto o número de casos e de mortes vem caindo em várias partes do mundo, aqui só tem subido.
Nesse movimento de evolução do vírus, de vez em quando podem aparecer variantes muito diferentes, como é o caso da P.1, que surgiu em Manaus, e também das originadas no Reino Unido e na África do Sul.
Por causa disso elas são chamadas de VOCs (variantes de preocupação, na sigla em inglês). Em geral, sabe-se que vírus, no decorrer de uma epidemia, podem apresentar de uma a duas mutações por mês.
No caso da P.1 e das demais, foram cerca de 20 de uma tacada só. Por isso elas preocupam.
O motivo para isso ocorrer ainda não é bem compreendido pela ciência. São como os acidentes de avião, compara a imunologista Ester Sabino, pesquisadora do Instituto de Medicina Tropical da USP.
“É uma sucessão de eventos raros. Há milhares de aviões no ar e uma hora ocorrem vários erros e um cai. Mas quanto mais aviões estiverem no ar, maior a chance. Ter 20 mutações em um mês é inesperado. Alguma coisa aconteceu e a gente não entende bem”, afirma.
A cientista — que está colaborando com estudos que buscam entender a transmissibilidade da P.1 e como ela pode escapar de anticorpos, permitindo assim a reinfecção — pondera, no entanto, que a variante só se torna um problema quando, além de adquirir muitas mutações, ganha espaço para infectar muitas pessoas.
“A P.1 é realmente mais transmissível. Se não tomar cuidado, a chance é maior de se contaminar com ela”, diz.
Ainda não há evidências para dizer se esta variante tomou conta da epidemia no Brasil nem se é a responsável pela explosão de novos casos observada na maior parte do país.
Sabe-se que a P.1 é a principal linhagem em Araraquara (interior de São Paulo) e em Porto Alegre — cidades que viram seus sistemas de saúde lotarem —, e em Manaus, onde o colapso dos hospitais levou pacientes a morrerem por falta de oxigênio.
Apesar do avanço das variantes, o Brasil reduziu no começo do ano o número de sequenciamentos genéticos, essencial para rastrear as cepas.
O virologista Mauricio Nogueira, professor da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto, reforça a ressalva feita por Ester de que o simples fato de a variante com mais mutações surgir não pode ser considerada a única explicação para o cenário de caos que se instalou no país. “Estamos dando oportunidade para esse acaso acontecer”, afirma ele.
“É muito conveniente para a sociedade, políticos e autoridades afirmarem que a culpa é da variante mais transmissível. Como se tivessem feito tudo para conter o problema, mas a variante tomou conta da cidade. Se tivéssemos tomado as medidas de segurança, não teria acontecido. A forma de prevenir é a mesma: distanciamento social e uso de máscara. O fato é que damos toda a oportunidade do mundo para que o vírus gere a maior quantidade do mundo de mutações”, diz.
Nogueira explica que o surgimento das variantes é matemático. “A cada X multiplicações, vai ter mutação. Quanto mais multiplicar, mais variantes vai gerar. Agora no Brasil é onde o vírus mais está se multiplicando, é onde já há o maior número de novos casos por dia. Se essa variante tem a oportunidade de ser transmitida quando a pessoa onde a mutação surgiu pega um avião lotado, vai ao cinema, ao restaurante… aí estamos nos tornando um celeiro de variantes e distribuindo-as à vontade dentro do país”, alerta. (R7).