O juiz, a OAB, o Ministério Público e o julgamento do estupro de Mariana Ferrer em Florianópolis
A Corregedoria Nacional de Justiça abriu procedimento disciplinar nesta terça-feira, 3, para apurar a conduta do juiz Rudson Marcos, de Santa Catarina, que presidiu audiência de julgamento de um processo de estupro e permitiu que o advogado do réu atacasse a jovem de 23 anos que fez a denúncia. A seccional local da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) também notificou o defensor, Cláudio Gastão da Rosa Filho, para investigar possíveis desvios éticos do profissional. O empresário acusado de abuso sexual foi inocentado.
A influenciadora digital Mariana Ferrer alega ter sido dopada e estuprada no camarote VIP de um beach club em Jurerê Internacional em dezembro de 2018. O empresário chegou a ser denunciado pelo Ministério Público e teve pedido de prisão temporária aceito pela Justiça, mas que acabou suspenso em segunda instância.
A decisão da 3ª Vara Criminal de Florianópolis que inocentou o empresário André Aranha da denúncia de estupro é de 9 de setembro, e o caso ganhou repercussão nesta terça-feira após o site The Intercept Brasil divulgar detalhes da sessão de audiência onde advogado Gastão insultou a jovem. Com o argumento de que a relação foi consensual, a defesa do empresário exibiu, na audiência, fotos sensuais feitas pela jovem antes do episódio, e sem qualquer relação com o fato. O advogado de Aranha, Cláudio Gastão, chegou a dizer que a menina tem como “ganha-pão” a “desgraça dos outros”. Apesar das intimidações, o juiz não repreendeu. As informações são do Estadão.
Em determinada altura da audiência, a jovem chegou a implorar ao magistrado por respeito. “Excelentíssimo, estou implorando por respeito, nem os acusados são tratados do jeito que estou sendo tratada, pelo amor de Deus, gente. O que é isso?”.
O pedido de investigação na corregedoria, órgão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), partiu do conselheiro Henrique Ávila. Em ofício enviado à corregedoria, ele classificou as imagens como “sessão de tortura psicológica no curso de uma solenidade processual”.
“Causa-nos espécie que a humilhação a que a vítima é submetida pelo advogado do réu ocorre sem que o juiz que preside o ato tome qualquer providência para cessar as investidas contra a depoente. O magistrado, ao não intervir, aquiesce com a violência cometida contra quem já teria sofrido repugnante abuso sexual”, disse Ávila, que também destacou o fato de a vítima reclamar de um tratamento que não é dado nem a acusados de crimes hediondos.
Entre as punições que podem eventualmente ser aplicadas pelo CNJ ao juiz estão advertência, censura, remoção compulsória, aposentadoria compulsória e demissão.
O Tribunal de Justiça de Santa Catarina disse apenas que também abriu investigação interna para apurar a conduta do magistrado na audiência.
A denúncia foi oferecida em julho de 2019 pelo promotor Alexandre Piazza, que deixou o caso após transferência voluntária. O promotor Thiago Carriço, que assumiu o caso, considerou jurisprudências apresentadas pela defesa apontando para falta de dolo (intenção).
“Em que pese haver registro de possível recusa da vítima, tal se deu após a prática da relação sexual ou libidinosa, quando a vítima manda mensagem para uma amiga informando que ‘não queria esse boy’ ou quando a vítima, já em casa, relata não ter consentimento em praticar qualquer ato sexual.”
Para o MP, “não há “indicação nos autos acerca do dolo”, uma vez que a vítima não aparentaria estar fora de seu estado normal, “não afigurando razoável presumir que soubesse ou deveria saber que a vítima não deseja a relação” – linha de defesa que o Intercept chamou de “estupro culposo”, tipo jurídico que não existe na legislação brasileira.
Defesa e MP sustentaram que a jovem estava consciente durante o ato sexual – e não sob forte efeito de drogas -, portanto não haveria estupro de vulnerável. E também que não teria sido provado que o empresário tentou embriagar a jovem. O juiz concordou que não poderia ser caracterizado como estupro de vulnerável. O MP disse, porém, que a absolvição não foi baseada no argumento de ‘estupro culposo” (sem intenção), mas “por falta de provas de estupro de vulnerável”.
Em nota, o advogado Gastão disse que os fatos “foram completamente esclarecidos após investigação policial e nos autos processuais”, que apontaram “relação consensual” e “foi atestado que ambos estavam com a capacidade cognitiva em perfeito estado”, conforme “peritos”. Não comentou os ataques à jovem na audiência. Disse ainda que “estupro culposo” “não é terminologia jurídica”, e que em nenhum momento o termo foi utilizado pelo juiz. Ele foi notificado pela OAB para dar esclarecimentos.
O advogado da jovem, Julio Cesar Fonseca, disse não poder comentar pelo segredo judicial, mas disse ter recorrido. Ele assumiu após a audiência.
Ministros repudiam episódios e cobram apuração
O ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes afirmou que as cenas “são estarrecedoras”. “O sistema de Justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação. Os órgãos de correição devem apurar a responsabilidade dos agentes envolvidos, inclusive daqueles que se omitiram”, disse o magistrado nas redes sociais.
O ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Bruno Dantas também repudiou a maneira como a audiência de julgamento foi conduzida. “Poucas vezes vi algo tão ultrajante. Especialistas em Direito Penal certamente falarão com propriedade sobre a tese do estupro culposo, que confesso desconhecer. O vídeo é aviltante e dá impressão de que não havia juiz presidindo a audiência ou Promotor fiscalizando a lei. Havia?”, escreveu ele.
Nota do Ministério Público de Santa Catarina
A 23ª Promotoria de Justiça da Capital, que atuou no caso, reafirma que combate de forma rigorosa a prática de atos de violência ou abuso sexual, tanto é que ofereceu denúncia criminal em busca da formação de elementos de prova em prol da verdade. Todavia, no caso concreto, após a produção de inúmeras provas, não foi possível a comprovação da prática de crime por parte do acusado.
Cabe ao Ministério Público, na condição de guardião dos direitos e deveres constitucionais, requerer o encaminhamento tecnicamente adequado para aquilo que consta no processo, independentemente da condição de autor ou vítima. Neste caso, a prova dos autos não demonstrou relação sexual sem que uma das partes tivesse o necessário discernimento dos fatos ou capacidade de oferecer resistência, ou, ainda, que a outra parte tivesse conhecimento dessa situação, pressupostos para a configuração de crime.
Portanto, a manifestação pela absolvição do acusado por parte do Promotor de Justiça não foi fundamentada na tese de “estupro culposo”, até porque tal tipo penal inexiste no ordenamento jurídico brasileiro. O réu acabou sendo absolvido na Justiça de primeiro grau por falta de provas de estupro de vulnerável.
O Ministério Público também lamenta a postura do advogado do réu durante a audiência criminal, que não se coaduna com a conduta que se espera dos profissionais do Direito envolvidos em processos tão sensíveis e difíceis às vítimas, e ressalta a importância de a conduta ser devidamente apurada pela OAB pelos seus canais competentes.
Salienta-se, ainda, que o Promotor de Justiça interveio em favor da vítima em outras ocasiões ao longo do ato processual, como forma de cessar a conduta do Advogado, o que não consta do trecho publicizado do vídeo.
O MPSC lamenta a difusão de informações equivocadas, com erros jurídicos graves, que induzem a sociedade a acreditar que em algum momento fosse possível defender a inocência de um réu com base num tipo penal inexistente. (Com informações do jornal O Estado de São Paulo e do Blog de Fabio Campana).