A democracia e o autoritarismo
- Thalles Guaracy
Recentemente, 2 estudos apontaram recuo da democracia em todo o mundo, sinal de que os sistemas democráticos estão sofrendo hoje um amplo julgamento.
A revista britânica The Economist recentemente divulgou o Democracy Index, seu índice democrático, que recuou de 5,48 pontos em 2018 para 5,44 pontos em 2019. Essa diferença decimal parece pequena, em números, mas é o pior resultado em uma década e 2º pior desde sua criação, em 2006.
No dia 29 de janeiro, a Universidade de Cambridge divulgou uma pesquisa com base em uma amostra de 4 milhões de pessoas em 154 países, que revelou um cenário também preocupante para a democracia. O percentual de pessoas insatisfeitas com o sistema democrático, que era de 48% em 1995, quando a pesquisa foi realizada pelo primeira vez, atingiu no ano passado a marca de 58% –um recorde.
“A democracia sofre de mal estar em todo o mundo“, disse o coordenador da pesquisa do Centro para o Futuro da Democracia em Cambridge, Roberto Foa.
Muitos países vêm perdendo pontos nos critérios pelos quais a The Economist mede o desempenho da democracia das nações: o processo eleitoral e o pluralismo, o funcionamento do governo, a participação política, a cultura política e as liberdades civis.
Dos 76 países democráticos, onde está menos da metade da população mundial, somente 22 são considerados democracias plenas, com mais de 8 pontos na escala do Democracy Index. Os Estados Unidos estão com 7,96 pontos. O Brasil, que tinha 7,12 pontos em 2010, hoje é considerado uma democracia apenas moderada, com 6,86 pontos.
A Rússia (3,11 pontos) e a China (2,26) são países autoritários. A pior ditadura do mundo, para os avaliadores da The Economist, é a Coreia do Norte, com 1,08 ponto.
O estudo de Cambridge aponta nos países do chamado mundo livre um apoio cada vez mais forte a lideranças autoritaristas ou populistas, ao mesmo tempo em que cresce o descrédito no sistema democrático.
Essa tendência autoritária segue mesmo nos Estados Unidos, onde o Senado americano acaba de bloquear o processo de impeachment contra o presidente Donald Trump por abuso de poder e obstrução do Congresso, contra todas as evidências. O próprio Trump confirmou as acusações, na semana passada, mas disse que as provas estão em seu poder, não do Congresso. “O material está comigo“, afirmou.
Contudo, não são apenas os regimes democráticos que estão em crise. Os mesmos estudos mostram que há igualmente uma crise dos regimes autoritários, que não vão melhor nem são mais bem vistos pela população. Chama a atenção na pesquisa feita pela The Economist o salto na categoria “participação política” –leia-se, hoje, protesto– , que aumentou tanto em países democráticos quanto nos autoritários: o índice saltou de 4,59 pontos em 2018, na média, para 5,28 pontos em 2020.
“Com exceção da América do Norte, todas as regiões registraram um aumento na categoria de participação política“, aponta o relatório. Em 2019, houve grandes protestos em países democráticos, como o Chile, e em países sob regimes autoritários, caso da Rússia, da Venezuela e da China.
Na Índia, que o presidente Jair Bolsonaro visitou recentemente, 250 milhões de pessoas fizeram uma greve geral contra o governo de Narendra Modi no último dia 6 de janeiro, em protesto contra a estagnação econômica e as prisões político-religiosas, apesar do governo indiano ser o recordista de cortes da internet para evitar a organização de protestos. Em 2018, o serviço de internet foi cortado no país 134 vezes, de acordo com a SFLC.in, organização de defensoria pública de Nova Delhi, que realiza esse levantamento desde 2012, com base na informação de jornalistas, grupos de defesa do direito e cidadãos.
O que há em comum entre as democracias e os regimes autoritários, explicando a pressão popular e escala mundial, é a dificuldade do setor público em responder aos desafios do capitalismo tecnológico, que aumentou a concentração de renda e a exclusão social. Ao mesmo tempo, o capitalismo tecnológico transnacional deu à população, com as redes sociais, mecanismos inéditos e amplos de expressão, organização e manifestação política.
Diante desse cenário, só uma coisa é certa. Os países com o mais alto índice de democracia, como Noruega (9,97 pontos), Suécia (9,39) e Canadá (9,22) são também os que possuem os mais altos índices de desenvolvimento econômico, com baixa desigualdade e menos turbulência social.
A democracia ainda é o regime que não apenas resolve melhor os conflitos, como o único que permite seu próprio questionamento. Somente a liberdade corrige os males da liberdade, dando à sociedade a capacidade de consertar seus erros.
Contudo, também não resta dúvida de que o sistema democrático hoje precisa de um ajuste, para responder aos novos desafios do capitalismo transnacional, criando, também, novos instrumentos. (* Thales Guaracy é jornalista e cientista social formado pela USP).