Em entrevista ao jornal Diário Catarinense, o juiz João Marcos Buch (natural de Porto União) diz o que pensa sobre o armamento da população
João Marcos Buch é juiz na área da execução penal em Joinville e ganhou notoriedade por decisões humanizadas e em defesa dos direitos humanos. Ele já sentiu na própria pele, quando criança, o poder de fogo de uma arma por um disparo acidental que atingiu seu rosto.
Na entrevista, Buch fala sobre a política de flexibilização armamentista do governo de Jair Bolsonaro (PSL):
Por que o senhor é contra a política armamentista?
Porque eu estudo, conheço a ciência e tenho trabalhado com o fenômeno da violência há muito tempo. Tenho percebido, não só através dos meus estudos como através da minha vivência, que o fator da arma de fogo é um fator de incremento da violência. Vejo com muita preocupação esse incentivo por parte do Governo Federal a uma cultura da violência, em que o governo diz que as pessoas devem se armar. Dizendo que, com isso, a sociedade sofrerá menos com violência quando, na realidade, é o contrário. É praticamente apagar um incêndio com gasolina. São muitos fatores que me levam a ser contrário a essa questão do armamento.
Não posso também deixar de esclarecer, porque já é público, que eu próprio fui vítima de acidente com arma, quando criança, na fazenda do meu pai. É claro que essa experiência é marcante para minha vida, porém não é isto que define meu pensamento. Meu pensamento é muito crítico em toda questão do fenômeno da violência em si, com armas ou sem armas, de como trabalhar uma possibilidade de redução da violência.
É praticamente apagar um incêndio com gasolina
O que o senhor vê como mentira na argumentação pró-armamentista?
A legítima defesa, de que as pessoas têm o direito de lutar pela sua defesa. A legítima defesa é um instituto do nosso direito. Mas isto é uma grande ilusão, acreditar que com uma arma nas mãos estará mais seguro. Isto é falso, não é verdadeiro. Fiz cursos de tiro, participei de cursos na academia da Polícia Federal em Brasília, de defesa pessoal e de armamentos. Montando (pistola) .40, atirando, tendo aula com especialistas. Todos os especialistas diziam que não é qualquer um que pode ter arma, que a pessoa precisa ter especialidade, habilidade, segurança para manuseá-la. Isto deve ficar com a polícia, que precisa ter capacitação.
Uma pessoa vai adquirir uma arma, conforme os novos moldes do decreto, vai levá-la para casa, deixá-la guardada para o momento em que precise utilizar. Se acontecer, ela não vai saber utilizá-la e aquela arma vai trazer um perigo maior para dentro do lar. Inclusive, do feminicídio. É óbvio que, quanto menos armas de fogo estiverem nos lares, menos as mulheres sofrerão com homicídios contra elas. Esse argumento da legítima defesa, na realidade, não vai acontecer. Vai trazer mais violência, mais vítimas, todos nós sofreremos.
Eu próprio fui vítima de acidente com arma, quando criança, na fazenda do meu pai
Buch durante inspeção em unidade prisional de Joinville
Entende que haverá agravamento na violência doméstica?
Haverá agravamento. Até mesmo uma faca dentro de um lar, ou outro instrumento de corte, não são feitos para matar. Liquidificador não é feito para matar. Claro que é uma questão de educação, mas a arma de fogo é feita para matar. Ressalvada a questão desportiva, de associações de prática, a arma de fogo é feita para matar em legítima defesa, no mínimo. A arma não vai ser utilizada para legítima defesa, ela vai incrementar a violência e os homicídios.
Mais um fator muito preocupante: sou juiz de execução penal há seis anos, mas sou juiz criminal há 18. Os crimes que eu já julguei, pessoas que já condenei por roubo a mão armada, pessoas que condenei por latrocínio, essas armas eu não recordo uma vez sequer que tenham vindo do exterior. São armas que eram lícitas, eram armas que o cidadão comprou para se defender e essa arma caiu na marginalidade, abasteceu o mundo do crime. Facilitar a aquisição de armas pelo cidadão comum é abastecer a via marginal e ilícita. Vai fazer com que as pessoas tenham mais armas para praticar atos de violência contra a lei.
As eleições também foram definidas pela discussão armamentista.
Ampliar o acesso às armas não significa atender uma expectativa da população?
Não. Porque, se o nosso presidente se adequasse aos últimos levantamentos, veria que mais de 60% da população brasileira é contra a flexibilização para aquisição de armas. Foi a última pesquisa que eu li (Datafolha). Essa ação do governo é decorrência da campanha, é política, mas é para um nicho de pessoas e não para todos os brasileiros.
Um nicho que votou no presidente sob o argumento do armamento, mas a grande maioria da população não é favorável a isso. Eu diria que é uma medida ideológica, de imposição de um pensamento único e que não admite diálogo e discussão. O assunto da violência, e por consequência a questão das armas, é muito complexo e não pode ser reduzido a um decreto. É uma precipitação e uma inconsequência. Todos os brasileiros vão sofrer com isso.
Facilitar a aquisição de armas pelo cidadão comum é abastecer a via marginal e ilícita
A pauta armamentista parece ser uma prioridade da direita, enquanto o desarmamento é prerrogativa mais alinhada à esquerda. As armas viraram uma discussão política?
É uma questão de direita e esquerda, mas não se restringe a isso. A grande maioria da população brasileira é contrária a essa flexibilização. Quem votou no Bolsonaro estava mais alinhado à direita, mas não significa que essas pessoas tenham esse posicionamento de liberação de armas. Acredito que esse decreto foi para satisfazer a um nicho, até mesmo a indústria das armas, o lobby. Nos EUA, a indústria é muito forte e pretende ser muito forte no Brasil também. A discussão passa pela questão de direita e esquerda, mas não se resume a isso. Muitas pessoas que votaram no presidente não são favoráveis ao decreto.
Por que é tão difícil mudar a opinião de quem defende o acesso às armas?
É uma questão maior, que é um discurso maniqueísta, de dividir o cidadão de bem do cidadão do mal. As pessoas se fecharam e não querem argumentar. Uma pessoa que defende a aquisição de arma vem ao longo dos anos recebendo informações falsas. A pessoa se sente amedrontada, às vezes nunca sofreu um assalto, na sua rua nunca teve uma casa roubada, mas ela diz que nas imediações estão sequestrando criancinhas.
De onde ela tem essa informação? De algum lugar veio isso e ela acreditou. É bombardeada diariamente pelas fake news e isto vai montando uma formação dentro dela que, em determinado momento, não vai estar aberta a diálogo nenhum. Se você pedir que ela leia um texto, escute, avalie experiências de outros lugares, ela vai se fechar e dizer: “ninguém vai mudar minha opinião, eu tenho essa opinião e assunto encerrado”. As pessoas preferem acreditar e não conhecer.
A discussão das armas tem como pano de fundo a sensação de insegurança. O cidadão já não confia mais nas forças policiais?
Não confia. As pessoas estão muito descrentes com as instituições. Mas não vou falar descrente com as instituições na classe média, que é vítima de crimes patrimoniais. As pessoas que vivem nas periferias, as vulneráveis, estão mais descrentes ainda com as instituições porque as instituições não chegam lá. As escolas, a saúde, a cultura, a urbanização, saneamento, habitação. Essas pessoas estão alijadas do Estado e não acreditam mais no Estado. Só que essas pessoas, vulneráveis, não terão condições de comprar armas. Quem vai ter condições de comprar é a classe média, que muito embora tenha a presença do Estado mais efetiva, com educação, saúde, sente um descrédito nas instituições por não ver uma resposta às demandas que apresentam.
Aí a gente chega na questão da segurança: as pessoas não se sentem mais seguras e acreditam que podem por si só se defender. Pelo contrário, vai ser um olho por olho, dente por dente. O Estado, em vez de fazer um decreto desse, deveria trabalhar o fortalecimento das polícias. O foco teria que ser nas fronteiras. É possível controlar a entrada de armas, mas parece que o Estado não está atento a isso e tenta satisfazer esse sentimento paranoico e coletivo de insegurança com o decreto das armas, como se fosse muito simples.
O Estado, em vez de fazer um decreto desse, deveria trabalhar o fortalecimento das polícias
Em alguns países e Estados americanos, por exemplo, o acesso às armas é uma questão cultural. Não podemos imaginar o mesmo cenário no Brasil?
Tem muitos sociólogos que estão tirando essa ideia de que o brasileiro é um povo amistoso, pacífico. A gente está percebendo que existe muita violência no seio da sociedade brasileira, na cultura brasileira. A questão das armas é uma consequência disso. Os Estados Unidos não é o país mais seguro do mundo. Você a todo momento está sujeito a sofrer um ataque de um lobo solitário que vai matar várias pessoas numa escola, numa igreja, numa festa. É muito mais fácil esse acesso lá.
Aí a gente pode ver o Canadá, que também tem uma cultura de arma. Mas é uma cultura não-belicista, não de confronto. É uma cultura de mais tolerância com o diferente. O Brasil não tem essa cultura de tolerância com o diferente. O Brasil se mostrou muito intolerante e com um sentimento de ódio que preocupam.
Em curto prazo, quais podem ser as consequências dessa abertura de acesso às armas?
A aquisição de armas não ficou simples, ela continua burocrática. É preciso documentos e tudo mais. Mas houve uma facilitação. A mudança maior que eu percebo é nessa ressonância que o cidadão comum, que deseja arma, tem na Presidência da República. Se eu estou na minha casa, me sinto inseguro, não acredito nas forças de segurança e acredito que o marginal vai entrar na minha casa a qualquer momento, e ouço o presidente da República dizendo “armem-se”, a minha vontade vai ser me armar. E vou procurar adquirir uma arma, não importa as dificuldades legais e burocráticas.
É um incentivo à compra de armas. Esse número de armas vai acabar aumentando e, como efeito imediato, vai ter maior número de vítimas dentro dos lares, como feminicídio, e maior número de armas caindo no mundo da ilicitude, com facções criminosas tendo acesso mais fácil a essas armas.