Aprendendo a ser governo
Carlos José Marques
Não há registro, nem em tempos imemoriáveis, de um presidente ter sido desmentido diretamente por seus subordinados. Talvez Dom João VI, na era do Brasil colônia, tenha sofrido alguma reprimenda dos mais chegados por seu apetite de glutão a traçar galinhas que não ficava bem à Corte. Mas nada além de mera galhofa escandida em particular. Jamais dita de bate-pronto, de forma tão peremptória, sem meias palavras ou “na lata”, como assinala a expressão popular. Mas eis que o presidente recém-empossado, Jair Messias Bolsonaro, resolveu exibir mais essa faceta peculiar de seu governo. E não foi apenas uma ou duas vezes. Em poucos dias, nada menos que três desmentidos – tal qual proferiu o Pedro bíblico – foram emitidos contra o “Salvador”, o novo mito tupiniquim, com o préstimo voluntário de auxiliares de segundo e até de terceiro escalão de esferas do poder. Está aí o que se pode chamar de um mandato realmente democrático, na conjugação mais precisa da palavra. Cada um diz o que quer e manda quem sabe mais, não importando a hierarquia. Seria cômico, não fosse trágico.
Um presidente não pode se prestar ao papel de ser desautorizado por quem comanda, de não ter credibilidade ou de não se mostrar minimamente sério, digno de respeito. Suas declarações e atitudes precisam necessariamente carregar o peso do cargo. Não deveriam simplesmente ser lançadas ao léu, deixando de valer no minuto seguinte. A despeito disso, o Messias foi negado três vezes. Contestado por assessores quando tratou de mudanças “mais brandas” na Previdência, teve também refutada a informação que proferiu sobre o aumento de alíquota do IOF. E, mais uma vez, quando ameaçou rever o acordo Boeing-Embraer, mostrando completo desconhecimento de questões estruturais sob sua alçada. A quizumba administrativa estava armada, mal se completava a primeira semana do mandatário no Planalto. Corre-se daqui e dali, tenta-se acomodar divergências, unificar o discurso, combinar versões, em vão. A situação só piorou. De lá por diante, o ministro-general Augusto Heleno rechaçou a ideia, também cogitada por Bolsonaro, de uma base militar americana em solo nacional e as patacoadas sobre a retirada brasileira do pacto de migração da ONU novamente reconduziram parceiros mundiais à interpretação de que esse aqui “não é um país sério”. Rasgar cartas de intenção como a acordada globalmente para fluxos migratórios tem suas consequências. Rever seletivamente compromissos sobre regras de fronteira tira respeito da Nação com reflexos no seu relacionamento diplomático e comercial. A conta ainda está para chegar e o prejuízo é certo, goste-se ou não da ideia. O timoneiro Bolsonaro, que conduz a nova ordem, não pode se converter em um bufão biruta ou em um falante quixotesco atirando a esmo contra moinhos imaginários. Nesses primeiros movimentos tem-se perdido um tempo enorme com questões laterais. Uma espécie de agenda pirotécnica prevalece, demandando discussão de gênero nas escolas, de troca de embaixadas e perseguição à esquerda e à mídia, quando o foco, logo no início, deveria ser fixado nas verdadeiras batalhas, as mais candentes e decisivas, concentradas nos planos econômico e da segurança, que irão demandar enorme esforço. Ficar batendo cabeça em assuntos diversos evidencia falta de objetividade e um amadorismo perigoso na comunicação. Parece existir uma predisposição a pseudos confrontos, repetidos exaustivamente como manobra diversionista, talvez para diluir expectativas. Há, por exemplo, uma clara missão de enfrentar o ranço ideológico. É Bolsonaro quem promete deixar o Brasil livre das “amarras ideológicas”. E, ato contínuo, de maneira enviesada, imbuídos de uma pretensa neutralidade, ministros varrem petistas do poder enquanto colocam correligionários e simpatizantes no lugar, recorrendo aos surrados métodos e práticas de aparelhamento do Estado.
Um filho do vice-presidente pula direto a um cargo estratégico numa estatal, para ganhar o triplo, por ser quem é. E assim prevalece a secular regra: é da panelinha, garante vaga. Pensa diferente, tem de ser extirpado, banido do posto, não importando a capacidade técnica ou experiência. Na prática ocorreu a simples inversão de ideologia, não a sua abolição. Aliados chamam o movimento de limpeza. Está mais para evangelização e reacionarismo. Não deveria ser assim. O cronômetro corre contra, enquanto diversos membros do Executivo evidenciam inaptidões claras para tocar a transformação esperada. A ministra titular da pasta dos Direitos Humanos e Família é o caso mais eloquente. Damares Alves, com suas colocações abjetas sobre o azul e o rosa para menino e menina, beirou a comédia, virou alvo de galhofa e passou a ser tratada como uma figura caricata da inabilidade federal em assuntos sociais. Seus impropérios assumiram status de delírio quando tratou de Jesus subindo uma goiabeira. Ninguém levou a sério. O conservadorismo fundamentalista de Damares disputou interesse no capítulo esquisitices com as manobras retóricas do ministro das relações exteriores, o chanceler Ernesto Araújo, que preparou uma pajelança de citações – misturando de Raul Seixas e Marcel Proust a frases em tupi-guarani, grego e hebraico – para flertar com o obscurantismo e o retrocesso no tema da globalização. Da mesma escola de retrocesso, o ministro da Educação, Ricardo Vélez, não tem perdido oportunidade de repudiar, na sua área, o que chama de “marxismo cultural”, sem oferecer soluções para os graves problemas do ensino. A baboseira dos falastrões toma conta enquanto faltam estofo e disposição para que aprendam logo a ser governo.