A política tende a se tornar cada vez mais imagética, diz pensador espanhos
“A política se converte em imagem. Hoje temos as redes sociais, nas quais os políticos criam a sua máscara, a sua ficção. Os próprios interessados geram a sua iconografia em função da circunstância”, diz o pensador espanhol de fotografia Joan Fontcuberta.
“Antes, havia uma única imagem de Hitler, que era usada para ilustrar qualquer notícia desse personagem. Esta foto serviria para ilustrar a notícia de que ele invadira a Polônia ou assistia a uma ópera de Wagner”, completa.
Um dos principais teóricos da fotografia hoje, com mais de quatro décadas de atividades e 12 livros publicados, Joan Fontcuberta fez uma conferência disputada nesta quinta (6) à noite, no festival de fotografia Solar, em Fortaleza.
Intitulada “A Decadência da Mentira”, sua fala girou em torno de questões ligadas à representação e à ambiguidade em narrativas midiáticas contemporâneas.
Para ele, a fotografia está se infiltrando em campos tão distintos como a política, o terrorismo e a economia, ou seja, em “todos os domínios da vida”, ao ponto em que “vivemos a imagem”.
Para exemplificar a captura do campo político pela imagem, o teórico exibiu imagens prosaicas de Jair Bolsonaro, tiradas do Instagram e do Facebook do presidente eleito. O político aparecia escovando os dentes, jogado no sofá vendo televisão, preparando o café da manhã e sorrindo ao lado de uma criança.
Fontcuberta nomeou este fenômeno de “vrai faux” (falso verdadeiro), pelo qual Bolsonaro se coloca “como qualquer outro cidadão”: tais imagens passariam a mensagem de que o capitão reformado não é monstruoso, e sim uma pessoa do povo, afirmou o pensador.
A primazia da imagem, disse, vem acontecendo desde que os horrores da Guerra do Vietnã foram expostos pelo jornalista Seymour Hersh. Hersh publicou um artigo divulgando o real número de mortos no massacre de My Lai, em 1968 -foram 504 vietnamitas assassinados por soldados americanos, e não 128, como havia divulgado o governo dos Estados Unidos.
À época, a revista Life publicou fotografias do massacre, que serviram não só para mudar a opinião pública a respeito da presença americana na guerra, mas também para dar às imagens protagonismo na organização do discurso.
Fontcuberta atribui ao massacre de My Lai uma virada a partir da qual começa a haver censura, supervisão e “controle de acesso a cenários sensíveis por parte de jornalistas e fotógrafos”.
“A consciência dessa liderança das imagens fez com o que o poder passasse a ser muito cuidadoso. Desde aquele momento, as guerras já não acontecem no campo de batalha, mas no campo das imagens e da opinião pública, muito sensível à informação”, disse.
O espanhol está presente no festival com algumas fotografias da série “Desconstruindo Osama” (2007), nas quais, manipulando vídeos do canal de televisão Al Jazeera, ele se inseriu nas imagens da rede como se fosse Osama Bin Laden, “me representando como terrorista”, disse.
Em algumas fotografias, no entanto, Fontcuberta faz poses que dificilmente um talibã faria, explicou. Por exemplo, há uma imagem na qual ele fica em pé, se equilibrando sobre um camelo. A ideia é produzir certa estranheza que permita aos espectadores notarem que há algo errado.
O objetivo de “Desconstruindo Osama” é tratar da disseminação de imagens e de notícias falsas na contemporaneidade. Uma das fotografias dessa série foi publicada pelo jornal espanhol El País como se fosse verdadeira.
Na toada política do festival Solar, declaradamente alinhado a valores de esquerda, embora sem se filiar a nenhum partido político, o teórico disse ainda que “o fantasma da extrema direita está sobre a Europa e sobre o mundo inteiro”. E perguntou, retoricamente: “De que maneira podemos contribuir para desativar essa ameaça?”. (Folhapress).